Folha de S. Paulo


Alguém merece ser estuprado?

Quem merece ser estuprada/o? A questão foi vomitada da tribuna da Câmara dos Deputados em sua forma negativa e como insulto endereçado por um nobre deputado a uma colega. Estupro e mérito numa mesma frase parecia inimaginável, mas deixou de sê-lo desde que o militar da reserva e parlamentar eleito com o maior número de votos nas últimas eleições pelo Rio de Janeiro a proferiu no último dia 9.

Desde então, fala-se de quebra de decoro por parte de um representante do povo (detentor de 450 mil votos) que, em alto e bom som, declarou que uma mulher pode merecer ou não ser objeto de um crime.

Não um crime qualquer, mas um estupro, a violação física de um outro ser humano pelo simples desejo de outro somado à força bruta. Um ato perpetrado por alguém que se acha no direito de fazê-lo por ser mais forte ou por ter os meios para submeter o mais frágil à sua vontade.

ESTUPRO VERBAL

As reações não tardaram e vieram com força nas rede sociais e na forma de manifestos que proliferam contra o polêmico deputado que já defendeu torturadores. Tipos que, a exemplo dos estupradores, também se valem do ato de subjugar, humilhar e provocar dor para conseguir seus objetivos –seja o prazer sádico seja uma confissão.

O "estupro verbal" de Jair Bolsonaro (PP-RJ) me fez lembrar de um episódio que me perseguiu durante anos. Acompanhei nos anos 1980 um caso de duas irmãs que, aos 11 e 9 anos, foram estupradas na frente dos pais e da avó por assaltantes que invadiram a casa da família. O estupro foi o arremate de uma noite de terror –tática usada pelos bandidos para calar as vítimas, diante da vergonha de confessar violação tão terrível, mesmo em busca de Justiça.

Eu me solidarizo com a deputada Maria do Rosário (PT-RS), ex-ministra da Secretaria de Direitos Humanos, que tem uma longa militância na luta contra a exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil. Mas a ofensa a ela direcionada certamente é ainda mais dura quando processada por mulheres e homens que foram vítimas de estupro e precisam lidar com essa dor pelo resto de suas vidas.

NATURALIZAÇÃO

Em 2013, foram registrados pela polícia 50.320 casos de estupro em todo o país, segundo dados do 8º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Levando-se em conta a subnotificação desse tipo de crime de natureza sexual –apenas 35% das vítimas relatam o episódio à polícia–, estima-se que o Brasil conviva com 143 mil estupros por ano. O documento chama atenção para as "taxas absurdas" e para a "naturalização" da prática.

Bolsonaro banaliza o estupro em seu discurso e revitimiza as vítimas, como aquelas meninas que tiveram a infância destruída por marginais que arbitraram que elas "mereciam" ser violadas. É disso que se trata cada hashtag #forabolsonaro e cada assinatura exigindo que seja aberto um processo de cassação por falta de decoro.

"Fica aí, Maria do Rosário", começava assim a intimidação do deputado. "Há poucos dias você me chamou de estuprador no Salão Verde e eu falei: 'Não estupraria você porque você não merece'". Reincidente, repetiu a sentença, fazendo uso da liberdade de expressão que o Estado de Direito lhe dá.

FERIDAS OCULTAS

Uma democracia que no dia seguinte mostrou a sua força com a entrega do relatório da Comissão Nacional da Verdade. A presidente Dilma Rousseff não conteve as lágrimas ao discursar sobre a importância do documento histórico.

A frase indecorosa de Bolsonaro foi proferida um dia antes de a ex-guerrilheira, hoje na pele de uma das mulheres mais poderosas do mundo, mostrar-se frágil ao rememorar as agruras físicas e psicológicas às quais foi submetida em três anos de prisão durante a ditadura. Sobre as sessões de martírio físico e psicológico que lhe custaram dentes, provocaram hemorragias e deixaram danos indeléveis, a hoje presidente concluiu em seu depoimento à comissão: "As marcas da tortura sou eu. Fazem parte de mim".

PROSTITUTA OU FREIRA

Um sentimento muito próximo do que testemunhei no caso do estupro daquelas duas meninas, hoje senhoras. A mesma dor que vislumbrei nos olhos marejados de Natasha, uma das seis meninas prostituídas do meu livro "As Meninas da Esquina", ao relatar como foi estuprada por três playboys, dentro de um carrão de luxo, numa noite chuvosa em que foi escolhida para acabar com o tédio daqueles jovens.

Ela tinha 17 anos, seis deles se virando nas ruas. De todas as indignidades e violências que sofreu, aquela é descrita como a mais tenebrosa. "Eles riam quando eu dizia que aquilo era estupro." E ouviu de um dos estupradores: "Desde quando prostituta é estuprada?" Um raciocínio de quem acha que a violência está no pacote do sexo pago.

Natasha conta que jogou na cara deles o dinheiro do programa. E saiu daquela caminhonete com o corpo e a alma dilacerados também pela certeza de que eles ficariam impunes.

Seja para uma criança inocente, uma prostituta ou uma freira –passando pela mãe, filha e mulher, em qualquer encarnação do ser feminino–, a dor, o medo e a vergonha causados por um ato criminoso e covarde como o estupro são eternos. Ninguém merece.


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