Folha de S. Paulo


Gabo e a privacidade nos tempos das 'selfies' e dos 'paparazzi'

Em uma de suas últimas aparições públicas, Gabriel García Márquez, que morreu no último dia 17, produziu uma imagem célebre: o escritor aparece com sua face enrugada e sorridente fazendo um gesto obsceno para a lente de um fotógrafo, na inauguração de um boliche, em 2013.

O retrato que ganhou as páginas de jornais em todo o mundo revela menos sobre seu personagem e mais sobre o jornalismo, ofício que ele também exerceu com maestria e definiu como "a melhor profissão do mundo".

De novo Gabo, uma semana antes de morrer, ao ver um batalhão de repórteres e fotógrafos na porta do hospital à espreita da sua morte, comentou: "Estão loucos, o que fazem lá fora. Que vão trabalhar, fazer algo útil".

O homem que criou a (FNPI) Fundación Gabriel García Márquez para el Nuevo Periodismo Iberoamericano mais do que ninguém sabia que o trabalho jornalístico incomoda e, quase sempre, é invasivo.

Na cobertura de tragédias, por exemplo, repórteres são corriqueiramente recebidos por faces iradas de curiosos que bradam: "Lá vem os urubus". Hipocrisia daqueles que vão correndo ler cada notícia e cada foto publicada sobre fatos que são de interesse público. Nesta condição, devem, portanto, ganhar publicidade, não apenas para saciar a curiosidade, mas pelo valor da informação e sua função social.

O CALVÁRIO DA FAMA

O desabafo de Gabo, que escreveu reportagens primorosas, uma delas em forma de um dos livros que mais me inspiraram na carreira ("Notícias de um Sequestro"), diz respeito também a um jornalismo tão em voga nos dias atuais: o de celebridades.

Depois de ganhar o Nobel, consagração da carreira do autor de "Cem Anos de Solidão" e "O Amor nos Tempos do Cólera", Márquez traduziu em palavras também as armadilhas da notoriedade. "A fama perturba o sentido de realidade, talvez quase tanto como o poder. É, além do mais, uma ameaça constante à vida privada. Infelizmente, ninguém acredita até padecer esse calvário."

Em meio à cobertura da agonia final do escritor após uma longa batalha contra o câncer, o ator Murilo Rosa e sua mulher, a top model Fernanda Tavares, protagonizaram cenas de enfrentamento com um "paparazzo", que tentava fotografá-los, quando passeavam com o filho, em um shopping do Rio.

O astro da Globo usou o Instagram para explicar o destempero. "Resolvemos pegar um cineminha, um dia bem legal. Eis que me aparece um 'fotógrafo' correndo e descendo a escada rolante, pulando na nossa frente de uma forma abusiva e clicando. Eu pedi para não tirar fotos do meu filho, ele botava a câmera na minha cara. Me estressei. Não existe lei contra um indivíduo desse, que fotografa o seu filho sem a sua autorização? Isso é permitido? É claro que não. Pode me fotografar à vontade, sempre respeitei a imprensa. Mas, sinceramente, as coisas estão estranhas."

CASO DE POLÍCIA

O entrevero virou caso de polícia, quando o fotógrafo Sandro Cardoso registrou boletim de ocorrência por lesão corporal, alegando ainda ter tido seu equipamento danificado no episódio.

Ele é um dos profissionais de uma conhecida agência de fotos especializada na cobertura de eventos com "presença VIP" e também em flagrante de famosos.

Enfim, é um dos odiados "paparazzi". Aqueles caras chatos, sempre de tocaia, produzindo incessantemente imagens para sites, jornais e revistas: o cantor entrando na farmácia, a atriz malhada saindo da academia, a apresentadora tomando água de coco, a ex-BBB exibindo a boa forma na praia.

Vai fazendo uma graninha com essas bobagens, enquanto espera um grande furo, que pode ser tanto um vacilo público de um medalhão das artes e da política quanto o primeiro beijo do galã recém-separado com a nova namorada.

As vítimas preferenciais dos profissionais do flagra são "os famosos", assim genericamente definidos. Tantos os de verdade, notórios por seus feitos e talentos, quanto as subcelebridades, alçadas ao "Olímpo da Fama" após o último reality show e antes do próximo.

VIDA PESSOAL

Uma parte daqueles que são perseguidos e expostos cotidianamente tenta criar uma barreira para o espaço não delimitado entre o público e o privado. Valem-se de um chavão repetido à exaustão: "Eu não falo de vida pessoal". Frase feita para ser jogada sempre que são questionados sobre assuntos que incomodam ou julgam ferir de alguma forma a noção de privacidade.

Tudo na vida é muito pessoal, ora bolas. A resposta padrão do manual de "media training" (sessões com assessores para aprender truques para lidar com a imprensa) soa vazia, quando proferida em determinados ambientes.

O "Não falo da vida pessoal" é irritantemente contraditório na boca daqueles que se alimentam e ganham mais fama e dinheiro surfando na indústria em torno das celebridades.

São artistas ou personalidades que engordam suas contas bancárias fazendo "o VIP" em lançamentos de roupa, calçados, bebida, carro. Eventos nos quais suas ilustres presenças são o chamariz para a cobertura da imprensa. Cobram cachês que variam de R$ 2 mil a R$ 25 mil (dependendo do sucesso da novela ou do reality show do momento), por uma horinha de trabalho. Faz parte do acordo surgir, aparecer, sorrir e dar entrevistas em backdrops (aqueles painéis gigantes com os nomes dos patrocinadores).

Acossados pelos flashes e microfones que procuram atrair, eles tentam se esquivar como se bastasse a falsa armadura do "não falo de vida pessoal".

NO INSTAGRAM

Para embaralhar ainda mais o meio de campo, a maioria das celebridades hoje passou a se comunicar com os fãs nas redes sociais. Assim como os simples mortais, muitos famosos também viraram "paparazzo" de si mesmos.

É contraditório ver o brado contra os profissionais do flagra, quando a apresentadora acorda no Instagram e vai dormir no Twitter, mostrando cada respiro e todos os passos do seu dia a dia.

Contradição ambulante também é a protagonista da novela que vai a um evento público de mãos dadas com seu novo amor, faz pose e dá até beijinho, mas se recusa a fornecer uma informação básica: o nome do namorado. Afinal, ela não fala de vida pessoal.

Então, falemos de quê? De filosofia? Talvez do cachê? Também não. Então, vamos às frivolidades. É impressionante a quantidade de assuntos sobre os quais os VIPs respondem nestes eventos: que tipo de pijama usam para dormir, qual é a boa da malhação, que marca de roupa e sapato escolheram (ou melhor, tomaram emprestado em uma troca para divulgar a grife), se preferem gloss ou batom?

PROFISSIONAIS DA FAMA
Do mesmo modo que há quem torça o nariz para a indústria de celebridades, existem os profissionais da fama, aqueles que sabem tirar o maior proveito possível da exposição. Apostam na máxima: quanto mais capas de revista melhor.

E, aí, vale tudo. Até "paparazzo" pré-combinado. Sim, isso existe. Sou testemunha dessa prática também contraditória, afinal os "paparazzi" vivem de fotografar sem pedir autorização para ninguém. São onipresentes e estão na cola de sua vítimas sem dar refresco nem na igreja, como descobriu há pouco Grazi Massafera, e divide seu calvário com o ex-marido Cauã Reymond e Ísis Valverde.

Se a novela que o trio protagoniza é real ou ficção pouco importa, diante da voracidade da produção e do consumo de notícias ou especulações dessa indústria que se equilibra na fronteira do jornalismo e do entretenimento.

Um belo dia, numa redação de uma revista focada em celebridades, toca o telefone. Do outro lado da linha, o assessor de uma figura pública que estava prestes a assumir o namoro com um empresário. Conforme acertado com um dos editores da publicação, o fotógrafo esperaria o casal à saída de um restaurante badalado para fazer um "flagra".

Na data, eis que irrompe na linha uma frase jamais imaginada: "Cadê o paparazzo?", cobrava, aos berros, a famosa ao celular. A editora, coitada, tentava explicar que o fotógrafo estava lá, sim. Pediu um tempo para ligar para o profissional escalado: "Ué, tô aqui escondido atrás da árvore", respondeu ele, seguindo à risca seu papel de "ladrão de foto".

"Ah, bom", acalmou-se o alvo do iminente flagrante fotográfico. Diante da informação de que o "paparazzo" estava a postos, o novo casal saiu de mãos dadas rumo ao primeiro flash. A imagem sorridente e meio granulada (afinal, era uma foto de "paparazzi", feita a certa distância) viraria capa da publicação.

FLASHES E CLICKS

É só um exemplo de uma engrenagem que vende muita revista e representa muitos clicks em sites. Desde que ninguém fale de vida pessoal, claro. Até o próximo evento, no qual os "vipinhos" e "vipões" da vez vão passar pelo corredor polonês de câmeras e microfones. E ainda tem uma nova luz que também se acende neste cenário já confuso: a dos próprios celulares. E dá-lhe "selfies", os autorretratos que viraram moda e vão parar nas redes sociais. Cada flash é também um "curtir".

Os fãs, acostumados a acompanhar a vida de seus famosos preferidos como novela a partir das fotos de "paparazzi", agora também podem beber na fonte oficial. Chega-se ao paradoxo dessa nova era da superexposição: a autoinvasão da privacidade.

Em palavras, não. Para que falar da vida pessoal se uma imagem vale mais que mil palavras? Um mestre delas, infelizmente, acabou de morrer. Sua foto, Gabriel García Márquez, com o dedo médio em riste para um fotógrafo disse muito.


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