Folha de S. Paulo


Mentiras de Boston

Para quem gosta de teorias de conspiração, a ótima série de TV "The Americans" é um programão. Ambientada na Washington de 1981, conta a vida de um casal de espiões da KGB.

No quarto episódio, vemos aquele atentado contra o então presidente Ronald Reagan. A KGB achava que era um golpe de Estado; CIA e FBI tiveram que pesquisar se a KGB não estava envolvida. Só uma semana depois ficou claro que o atirador, John Hinckley Jr., tinha problemas mentais e queria apenas chamar a atenção da atriz Jodie Foster. Segundo um biógrafo, Reagan brincou" "Ainda bem que não foi a KGB. Eles não teriam errado o tiro".

Mas, por horas, todas as redes de TV americanas noticiaram que o secretário de imprensa de Reagan, James Brady, tinha morrido. Ferido, mas não morreu.

Veja vídeo

É comum ver policiais, espiões e jornalistas cometendo erros e tropeços sob pressão do "precisamos obter respostas já". O atentado da semana passada em Boston assanhou aqueles ainda estacionados na Guerra Fria. Parte da direita americana e dos comentaristas da Fox News se apressaram a dizer que organizações terroristas islâmicas estavam por trás dos irmãos Tsarnaev.

Parte da esquerda brasileira fica espalhando uma série de montagens bastante toscas na internet para "provar" que os atentados de Boston não passaram de uma armação.

Sim, há diversas questões sem solucionar sobre o atentado que aconteceu há apenas uma semana.

Dezenas de pistas falsas surgiram e surgirão pelo caminho e em tempos de onipresentes câmeras e celulares, a seleção do joio dá trabalho.

Polícias fazem trapalhadas e nem sempre são transparentes como deveriam.

Mas muitos dos céticos na internet brasileira já disseram, uma década atrás, que o 11 de setembro era uma conspiração, feita por americanos (ou por israelenses).

Culpar os jihadistas, os fundamentalistas que dão tiros em meninas que querem estudar ou que controlam o negócio do ópio no Afeganistão enquanto falam de Alá, nem pensar. Para nossos antiamericanos, melhor continuar a culpar a vítima do que quem perpetrou o terrorismo.

Na semana passada, essa galera muito esperta repetia sem parar que "a polícia americana mata mesmo, vai apagar os dois suspeitos, e ninguém nunca vai saber o que aconteceu".
Bem, um deles está vivo, já teve designados três defensores públicos pelo governo americano e... Estavam errados, né? Se o rapaz morrer pelos ferimentos, dirão "está vendo como apagaram o suspeito". Mas, se fosse para "apagar", isso já teria ocorrido, não?

Se o FBI quisesse de fato achar dois laranjas, precisaria recorrer ao público para achar os suspeitos? Apresentaria as fotos dos dois _ fotos, aliás obtidas no melhor estilo crowdsourcing, uma vaquinha virtual aonde milhares compartilharam fotos e videos?

Sim, levamos vinte anos para julgar o massacre do Carandiru e basta um assassinato cometido por um menor para querermos mudar a maioridade penal no Brasil. Somos incapazes de ter uma estatística séria que nos diga, afinal, quantos crimes são cometidos por menores de idade. Ainda assim, nos achamos muito superiores à competência do FBI e do governo americano.

Tratar o terrorismo com tamanha leviandade pode custar muito caro. Em pouco tempo, o Brasil sediará pela primeira vez dois grandes eventos internacionais e não deveríamos levar o terrorismo na brincadeira. Países como Argentina, Turquia, Índia, Marrocos, Espanha, França e Inglaterra já sofreram com atentados _ não são exclusividade contra a superpotência americana.

CRÍTICA SELETIVA

Muitos que parecem implorar para descobrir uma "mentira" do governo americano nos atentados de Boston, logo menosprezando o que houve na maratona, parecem ter um sentido crítico bastante seletivo.

Nossos supercríticos, que adoram repetir "temos que desconfiar da versão oficial", colocam o senso crítico na geladeira para elogiar o "sucesso" de Cuba, esperneiam contra Marcos Feliciano, mas se calam diante da homofobia de Nicolas Maduro, mas se pretendem os Sherlock Holmes no que se refere aos EUA.

Parte do antiamericanismo existe exclusivamente pelo tamanho da superpotência. É o grandalhão da escola, ora acusado de bullying, ora criticado por nos ignorar ou não nos convidar para jogar videogame em sua casa.

Outra parte, pelo que aconteceu na Guerra Fria, quando as duas superpotências patrocinavam ditaduras no xadrez global. Não devemos esquecer da União Soviética.
Quanto maior um país, maiores os seus interesses em todas as esquinas do mundo, as negociatas, os parceiros suspeitos. Vale também para qualquer país europeu ou até mesmo para a China de hoje.

Quando se tem um tamanho modesto (o Brasil é menos de um sétimo do PIB americano), é fácil não ter que dar opiniões, não ter que tomar partido.

Com o crescimento recente do Brasil, ainda que sejamos uma potência de porte médio, já atraimos acusações que antes eram exclusivas contra os Estados Unidos.

Que será que os paraguaios estão achando de nossa "exigência" de que o Executivo deles obrigue o Legislativo de lá a aceitar a Venezuela no Mercosul?

O que quase 50% dos venezuelanos, que votaram no Capriles, acham do vídeo que Lula fez fazendo campanha para Maduro _ ou que tenhamos parabenizado Maduro antes mesmo da recontagem ter sido feita?

Nossos presidentes tiram fotos com ditadores, enquanto trabalham e negociam para que grandes empresas brasileiras ganhem obras _ de empreiteiras à mineração _ em ditaduras. De FHC com Fujimori a Lula com ditadores africanos, não estamos sendo tão diferentes dos americanos com os sauditas _ negócios em primeiro lugar. Nos achamos melhores que os americanos?

Sim, Bush não é o único a ser amigo de ditadores quando convem. Teremos que nos acostumar com essa real politik _ até para entender os deslizes históricos da superpotência.

No Twitter: @rauljustelores


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