Folha de S. Paulo


O prefeito da virada

As primeiras cenas do documentário "Koch" mostram uma Nova York em escombros, em 1977, pouco depois da quase falência da prefeitura da cidade.

É pior ainda do que se vê em filmes como "Taxi Driver" e "After Hours" (ambos de Martin Scorsese): trens do metrô totalmente esculachados, pichação vandálica por todos os lugares, saques a lojas e supermercados durante blecautes, incêndios e prédios que desabavam sem manutenção e um toque de recolher informal em boa parte da cidade.

No Central Park, aconteciam estupros e assaltos a partir das 6 da tarde --mas diversos lugares de Nova York eram lugares para não se caminhar à noite: Bowery, Tompkins Square e Bryant Park eram ocupados por nóias, sem-teto e criminosos também durante o dia.

Pouco antes, o então presidente Gerald Ford teria dito "Deixe Nova York cair morta" --frase que estampou todos os jornais da época (depois ele disse que não foi bem assim).

O democrata Ed Koch foi eleito nessa época e reeleito duas vezes. Muita gente no exterior acha que Rudolph Giuliani foi o grande prefeito nova-iorquino, mas para os locais, Koch foi o prefeito da virada. Era um polêmico comunicador, que dizia o que pensava, que fez alianças com os bons e maus donos do pedaço para conseguir governar, mas que injetou um senso de confiança na cidade, de que o fundo do poço ficaria para trás.

Conseguiu reduzir em 80% o deficit herdado, pagou dividas, cortou gastos e começou parcerias espertas público-privadas para recuperar o espaço público (foi nessa época que surgiu a sociedade que conserva o Central Park até hoje, financiada e gerida por vizinhos).

Várias vezes, exagerou na dose --fechou um deficitário hospital do Harlem por "baixo desempenho", sem se importar com a importância que tinha para a comunidade negra; e fez menos do que deveria durante a epidemia da Aids, que dizimou parcela importante da população local. Vários assessores caíram depois de denúncias por corrupção, que jamais salpicaram nele.

Vídeo

No documentário rodado entre 2011 e 2012, onde Koch analisa fartamente seus 12 anos de gestão, ele diz que se arrepende de ter fechado o tal hospital do Harlem ("fui insensível") e nega que tenha ignorado a epidemia de Aids por ser um gay no armário.

Ao ser perguntado se era gay, respondeu "nunca falei desse assunto porque não acho que essa pergunta tenha que virar parte obrigatória dos questionários políticos". "It's not your fucking business" (uma maneira kochiana de dizer que você não tem nada a ver com o assunto). O movimento gay jamais o perdoou.

Em um período de fortes divisões raciais, seu grande legado foi o de construir ou reformar mais de 150 mil unidades habitacionais populares, principalmente no Bronx e no Harlem (isso é mais que toda a habitação popular feita pelas gestões municipais paulistanas nos últimos 22 anos). Foi sua resposta para milhares de sem-teto que vagavam pela cidade (os apartamentos são subsidiados até hoje, com alugueis baratos).

Mas o maior legado de Koch, intangível, foi o de mostrar aos nova-iorquinos que a cidade tinha remédio, que dava, sim, para acreditar numa reconstrução. Além de obras, foi preciso muito gogó. Ele morreu no mês passado, aos 88 anos, no apartamento alugado em que morava sozinho no Village, um dia antes da estreia do filme nos cinemas nova-iorquinos. Pouco antes de morrer, a Câmara da cidade aprovou batizar uma das maiores pontes nova-iorquinas com o seu nome.


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