Folha de S. Paulo


Xô, abutres!

Anunciada pelo presidente do Senado, Renan Calheiros, como tábua de salvação para a crise econômico-política do país, a Agenda Brasil inclui temas que têm impactos profundos sobre a organização do território e de nossas cidades. São eles: a revisão da legislação de licenciamento de investimentos na zona costeira, em áreas naturais protegidas e cidades históricas; a revisão dos marcos jurídicos que regulam áreas indígenas; o estímulo ao desenvolvimento turístico e à realização de megaeventos, incluindo a simplificação do licenciamento para construção de equipamentos e infraestrutura turística em cidades históricas, na orla marítima e em unidades de conservação.

Todos eles, como boa parte dos itens da agenda, estão vinculados a uma narrativa reiterada "ad nauseam" por seus proponentes de que a possibilidade de crescimento econômico e multiplicação de "investimentos produtivos" está travada pela "burocracia" imposta por um Estado ineficiente e corrupto.

Quem conhece a história da ocupação do território brasileiro sabe que a lógica que a presidiu foi, desde os tempos coloniais, a exploração predatória, ou seja, a máxima extração de riqueza, no menor tempo possível, sem qualquer preocupação com o futuro, e muito menos com outros valores e dimensões que não estritamente a rentabilidade econômica, tais como a memória, a noção de bem comum, o sagrado, a estética.

Assim, foi com muito custo que se construiu, a partir dos anos 1930, uma regulação que tenta limitar essa lógica, formulada primeiro em torno da noção de patrimônio histórico e, em décadas mais recentes, da preservação de territórios indígenas e ecossistemas ambientais.

Mas assim como ocorre em outros tipos de regulação no Brasil, com o tempo, estas foram sendo tomadas por ambiguidades, irresoluções e sobreposições jurídicas que acabaram limitando a potência dos instrumentos de preservação, ao mesmo tempo em que também foram sendo capturadas e solapadas por interesses econômicos.

Um exemplo disso é como são produzidos hoje os relatórios de impacto ambiental necessários à aprovação de diversos empreendimentos. Tais relatórios são encomendados e financiados pelas próprias empresas interessadas, o que, de um lado, gerou uma verdadeira indústria e, de outro, acarretou enormes impasses no equacionamento dos impactos, já que quem produz os relatórios não raro sofre pressões de quem o contrata.

Por essa e outras razões, não defendo o modelo atual de regulação do território, que de fato não tem sido capaz de evitar a crise urbano-ambiental que estamos vivendo, da qual a escassez de água, por exemplo, é apenas um dos sintomas.

Mas "simplificar" ou "eliminar" qualquer tipo de regulação sobre os espaços de memória, os ecossistemas, as paisagens, os direitos sobre a terra urbana e rural de quem a ocupa é simplesmente deixar livre o caminho para os abutres.

Porque abutre é assim: aproveita o momento de instabilidade e fragilidade do Estado para impor sua lógica predatória, articulada tão somente em torno das variáveis da rentabilidade e do lucro.

A reconfiguração democrática do território, urgente e necessária, é tarefa mais complexa do que propõe essa agenda oportunista e passa justamente pela eliminação, definitiva, da lógica predatória.


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