Folha de S. Paulo


Terras públicas para quem?

Em tempos de crescimento desenfreado do preço dos imóveis e "expulsão" de moradores de menor renda para as periferias das metrópoles, a discussão sobre o destino de terras públicas bem localizadas é central.

Essas terras são praticamente a única oportunidade que temos de desenvolver projetos públicos, não lucrativos, em área bem localizada. Falo de habitação de interesse social, mas também de parques, praças, áreas públicas de esporte, lazer e cultura, entre outras coisas fundamentais para a vida nas cidades.

Infelizmente, quase nunca essas oportunidades são aproveitadas. É longo nosso histórico de usurpação de terras públicas.

É verdade que, em muitos casos, terras e imóveis públicos são vendidos para saldar dívidas de empresas públicas extintas. Também há casos de regularização fundiária em terras ocupadas para moradia. Mas há também uma longa lista de ilhas, áreas costeiras e grandes terrenos vendidos sem critério ou simplesmente apropriados por privados para benefício exclusivo.

Mais recentemente, sob a forma de parcerias público-privadas, vimos grandes áreas públicas serem ocupadas por empreendimentos imobiliários de discutível interesse público. É o caso do Porto Maravilha, no Rio de Janeiro, e da Cidade da Copa, na região metropolitana do Recife.

Aliás, existe hoje na capital pernambucana forte movimento contra a implementação do Projeto Novo Recife, um megaempreendimento no cais José Estelita, que prevê a construção de 12 torres de 40 andares. Esta área de 100 mil m², no centro da cidade, pertencia à Rede Ferroviária Federal e foi arrematada à União por quatro grandes construtoras, em leilão realizado em 2008.

O Estelita era parte de uma grande reserva de áreas públicas há muito subutilizadas, pertencentes aos governos federal e estadual, na frente marítima que vai do centro do Recife até Olinda. Em 2003, quando eu estava no Ministério das Cidades, o Estado demandava o repasse dos terrenos federais para um projeto de parceria público-privada, quando decidimos, com as duas prefeituras, Iphan (Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e Secretaria do Patrimônio da União, formular uma alternativa conjunta.

Dois anos depois, lançamos o Projeto Recife-Olinda, que propunha disponibilizar espaço e transporte público de qualidade, previa que um terço das residências ali fossem habitações populares e destinava recursos para urbanização de todas as favelas da área, além de restauro de bens patrimoniais.

Em 2007, mudou a gestão estadual e o projeto foi abandonado. Hoje, esta área passa por intensas transformações, da pior forma possível: terras públicas estão sendo privatizadas de maneira fragmentada, sem nenhum projeto global discutido com as duas cidades.

O movimento "Ocupe Estelita" contesta a legalidade do leilão e denuncia a ausência de estudos de impacto, entre outros pontos. Mas, principalmente, reivindica espaços públicos de diálogo que permitam a negociação de propostas alternativas, já que se trata de intervenção em local estratégico da cidade.

O que acontece no Recife é apenas um exemplo da longa história do ocaso das terras públicas no Brasil. A decisão sobre o que fazer nesses terrenos, por que, como e pra quem é fundamental para nossas cidades e merece debate público amplo, aberto e transparente.


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