Folha de S. Paulo


A mudança do clima e seu falso hiato

Em setembro de 2013, quando umas duas centenas de jornalistas faziam fila para entrar num centro de convenções na orla de Estocolmo, todos pareciam ter a mesma curiosidade. O principal motivo pelo qual enfrentavam o vento frio da baía de Riddarfjärden no outono era saber por que o aquecimento global tinha aparentemente parado de acelerar.

A resposta para essa questão, assim esperávamos, viria do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudança Climática), o fórum de cientistas que periodicamente busca delinear o consenso sobre o assunto. Ao longo dos 15 anos que antecederam aquele encontro na Suécia, a taxa de aumento de temperatura, de 0,039°C por década, era menor do que a verificada na segunda metade do século 20 (0,113°C), e era menor do que previam as simulações matemáticas de clima.

As vozes que atacavam a ciência do aquecimento global, claro, apontavam isso como evidência de que a mudança climática não existe. Mas o IPCC foi firme em sua posição de que o chamado "hiato", ou "pausa" do aquecimento global era apenas uma ilusão de que as temperaturas estavam freando. A explicação dada pelos cientistas em Estocolmo se baseava em três pontos.

Primeiro, a série de 15 anos em que o aquecimento global sofreu a pausa se iniciava em 1998, um ano em que havia sido registrado um forte El Niño (emergência de águas quentes no Pacífico). Essa anomalia tornava aquele ano um ponto de partida inadequado para projetar uma tendência de desaceleração. Para qualquer outro recorte do mesmo tamanho que se escolhesse, o hiato desparecia.

Em segundo lugar, o aquecimento global é um evento que se manifesta em escala de longo prazo, da ordem de três décadas ou mais. Um período de desaceleração de 15 anos não era motivo para deixar de lado a preocupação com a taxa de aquecimento medida desde 1900 até aquele ano, com a adição de 0,115°C por década. Pode não parecer muito, mas é essa taxa que vai eventualmente levar o planeta a superar o limite considerado perigoso de 2°C a mais de temperatura no planeta.

E o terceiro ponto é que boa parte do calor excedente que é produzido no efeito estufa, agravado pelas emissões de CO2 por atividades humanas, não fica na superfície da Terra. Correntes oceânicas provocam o afundamento de águas quentes, e é tecnicamente muito difícil obter uma temperatura média dos oceanos levando em conta massas de água a profundezas abissais.

A maior parte dos jornalistas pareceu sair de Estocolmo convencida de que o aquecimento global continuava tão preocupante quanto no fim do século passado. Mas a história não acabou ali.

EM BUSCA DO CALOR PERDIDO

Desde que hiato começou a se delinear, produziu-se uma montanha de literatura científica sobre o assunto, e nada surgiu que pudesse derrubar esses argumentos. Alguns estudos deixaram um pouco de lado a questão da tendência de longo prazo do aquecimento global para se debruçarem sobre o curto e médio prazo. Como a captura de radiação pelo efeito estufa não tinha parado –com a concentração de CO2 atingindo 400 partes por milhão agora– o calor gerado pelo fenômeno tinha que ter ido parar em algum lugar.

Alguns estudos apontavam o oceano Pacífico como responsável por enterrar essa energia, temporariamente, em águas profundas. Um trabalho do climatologista Xianyao Chen, da Universidade de Washington, por outro lado, sugeriu que o calor excedente estava passeando no fundo do Atlântico antes de retornar à superfície.

Outra explicação, levantada por um estudo do estatístico Kevin Cowtan, da Universidade de York, via problemas na maneira com que as temperaturas do Ártico vinham sendo incorporadas á média global. A tarefa não é tão fácil de fazer, já que a rede de termômetros que monitoram a região é menos densa.

Mas o debate acabou meio que se encerrando por Deus ex machina no fim do ano passado, quando o hiato do aquecimento global terminou. O ano de 2014 foi o mais quente já registrado desde que a média de temperaturas do planeta começou a ser estimada. No período de 2000 até aquele ano, o ritmo do aquecimento foi de 0,116°C por década, o que significaria uma aceleração da mudança climática, não uma freada.

ENTRE BALDES E BOIAS

A questão do hiato 1998-2013, porém, continuou como uma pulga atrás da orelha dos climatologistas. Ainda que o período não tenha afetado as previsões de longo prazo para o aquecimento global, os cientistas queriam entender por que a pausa ocorreu. E uma hipótese menos explorada –que nem sequer foi mencionada no relatório que o IPCC publicou em setembro de 2013– era a de que o hiato simplesmente não ocorreu.

E é justamente essa a conclusão de um trabalho de cientistas da NOAA (Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos EUA) publicado na última quinta-feira (4) pela revista "Science". O problema, apontam os pesquisadores, é que a média de temperatura não foi ajustada corretamente à crescente rede de termômetros presentes na superfície dos oceanos. O que pareceu ser uma taxa de 0,039°C por década durante o hiato, na verdade, era um aumento de 0,106°C –e isso sem contar eventuais correções a serem feitas sobre o Ártico. Mas de onde saíram esses números?

Até meados do século 20, a única maneira de medir temperaturas de superfície oceânica era com baldes que as tripulações de navios içavam para coletar água. Depois disso, gradualmente, a temperatura passou a ser registrada automaticamente por termômetros instalados nas cânulas que levavam água do mar para resfriar os motores das embarcações. Até o fim do milênio, essas medições dependiam em grande medidas de registros de navios comerciais, mas na última década já existia uma rede considerável de boias em alto mar especificamente projetadas como estações climáticas, muito mais confiáveis.

À medida que a tecnologia de medição de temperatura mudava, porém, ajustes precisavam ser feitos. Os termômetros de balde registravam temperaturas ligeiramente mais baixas que os de motor, e essa diferença de acurácia tinha de ser levada em conta, por exemplo. Os cientistas sabiam disso, mas fazer essas correções em grandes bases de dados requer um trabalho considerável, que foi sendo feito aos poucos e ainda não acabou. A última correção na base de dados usada pela NOAA havia sido feita no ano passado, e na hora que os cientistas decidiram levá-la em conta em suas estimativas, voilà: o hiato desapareceu. Uma das coisas que a agência constatou foi que, ainda hoje, alguns navios usam o método do balde para tirar a temperatura da água, uma técnica que foi prematuramente considerada extinta.

A reação daqueles que negam a existência do aquecimento global, claro, foi a de acusar a NOAA de manipulação. Mas as alterações feitas agora na curva de temperatura, de um jeito ou de outro, são mínimas. Os novos gráficos para o histórico de temperaturas de 1880 até aqui são virtualmente idênticos aos usados no ano passado. As únicas exceções são uma pequena correção (para menos) feita por volta de 1940, e um desvio ainda menor (para mais) relativo ao período 1998-2013. E a constatação de que o aquecimento global não desacelerou, por fim, parece ter surpreendido mais os leigos do que os climatologistas.

Gavin Schmidt, cientista da Nasa que gerencia uma base de dados históricos de temperatura independente da NOAA, resumiu a novela toda em uma frase, comentando o novo estudo em seu blog: "O hiato é tão frágil que mesmo essas pequenas mudanças o fizeram desaparecer".


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