Folha de S. Paulo


Uma ferramenta para Lucy

Desde que Charles Darwin delineou a teoria da evolução no século 19, tentativas de garantir ao Homo sapiens um galho especial na Árvore da Vida têm encontrado problemas. Para tal, é preciso reunir evidências de que o bicho homem têm mesmo uma série de características exclusivas, mas muito do que se supunha unicamente "humano" tem se esvaído com o avanço da primatologia e da paleontologia.

Na última quinta-feira, o anúncio de uma descoberta do grupo da paleoantropóloga francesa Hélène Roche aplicou mais um golpe nas crenças antropocentristas. Pesquisadores que analisaram um conjunto de ferramentas de pedra pré-históricas encontradas no Quênia concluíram que essas peças possuem 3,3 milhões de anos de idade, e foram produzidas numa época em que ainda não existiam "humanos", se aplicarmos esse termo apenas aos primatas do gênero Homo.

Roche e seus colegas apresentam suas evidências da descoberta num estudo na revista "Nature". É essencialmente um conjunto de 19 pedras moldadas por golpes de outras pedras para tomar forma de lâmina, como uma machadinha sem cabo. Foi encontrada também uma lasca que se encaixava numa das peças maiores, pista de como as ferramentas eram feitas.

Até a semana passada acreditava-se que as mais antigas ferramentas de pedra haviam sido produzidas 2,6 milhões de anos atrás, por indivíduos da espécie Homo habilis, o "homem habilidoso". A decisão de dar ou não a um primata extinto o status do gênero Homo é em certa medida arbitrária, mas pesquisadores vinham tentando ser criteriosos. A morfologia conta muito, mas o fato de o H. habilis entalhar rocha para produzir ferramentas contribuiu para que ele entrasse no clube ao qual pertencem também os humanos modernos, o neandertal e o Homo erectus.

Evidências indiretas de que o uso de ferramentas antecede os 3 milhões de anos já existiam, mas ainda eram material controverso. Agora, enfim, talvez existam critérios para que o domínio Homo seja expandido.

CHIMPANZÉS E AUSTRALOPITECOS

É bom lembrar aqui que a crença sobre nossa exclusividade na produção de ferramentas já havia sido abalada antes. Não por um fóssil, mas pelos nossos primos chimpanzés - macacos que se separaram do nosso galho na Árvore da Vida há uns 6 milhões de anos. Desde a década de 1960, estudos com esses grandes símios na Tanzânia e em outros lugares da África mostram que eles fazem, sim, um uso rudimentar de objetos em seu ambiente.

O repertório dos chimpanzés inclui o uso de varetas para capturar cupins e de pedras (não moldadas) para golpear nozes e romper suas cascas. Mas há um argumento para minimizar as coisas fascinantes das quais esses símios são capazes. Modificar um objeto para dar-lhe uma forma específica de ferramenta – tal qual fazia o H. habilis e tal qual fazemos nós– ainda seria algo que só o gênero Homo seria capaz de fazer.

Entretanto, espécies de hominídeos que antecederam o H. habilis, como as do gênero Australopithecus, vêm sendo descritas basicamente como seres sem linguagem e capacidade limitada de abstração —problemas que limitariam sua habilidade de manipular coisas ao redor. Há 3,3 milhões de anos, porém, eram essas criaturas que estavam rondando a África. Talvez houvesse outras, ainda desconhecidas, e Roche não sabe dizer qual tipo de primata produziu os artefatos de pedra lascada mostrados agora na "Nature". É improvável, contudo, que já existisse algo parecido com o Homo habilis na época.

Muitos museus de história natural possuem modelos tentando reconstituir a aparência de Lucy, a mais famosa fêmea de Australopithecus afarensis, que morreu há 3,2 milhões de anos e teve seu esqueleto preservado em fóssil. Lucy aparece basicamente como um macaco que anda em pé: nua, cheia de pelos, com expressão feral e sem nada nas mãos. Se ficar claro que um australopiteco foi o criador das ferramentas achadas no Quênia, porém, talvez seja hora conceder a Lucy uma pequena promoção. Se ela não puder entrar para o grupo dos Homo, talvez ganhe ao menos o direito de segurar uma lâmina de pedra dentro dos museus.


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