Folha de S. Paulo


Fogo cruzado

A seleção se apresenta hoje para a disputa da Copa América com Dunga sob fogo cruzado. Há dois meses, a cúpula da CBF dizia estar fazendo análises sobre o desempenho do treinador: "Temos a Copa América para decidir."

Hoje, Dunga corre um risco maior do que não ser bem avaliado pelos dirigentes. Seu trabalho não é bem visto pelos jogadores. A percepção de nove entre dez convocados de que falta repertório tático e capacidade para dar padrão para quem vem de clubes e culturas diferentes.

Em situação de pressão no Barcelona, o instinto de Daniel Alves é atacar. O de Felipe Luís, no Atlético de Madrid, é defender. Na seleção, nenhum dos dois sabe exatamente como proceder em cada momento.

Daniel Alves e Felipe Luís apenas exemplificam a falta de critérios para a atuação de cada jogador em cada função. A percepção não é do analista. É o relato de quem está dentro do grupo.

Não é só Dunga quem gera desconforto na seleção. Neymar também. Não há ciúme do craque, mas existe a ideia de que o tratamento é rigoroso com alguns e submisso com outro -assim, no singular.

Jéfferson, Thiago Silva, Marcelo e David Luiz perderam lugar nas convocações por razões distintas. Jéfferson falhou contra o Peru e o Chile. Dunga não gostou de algumas declarações depois de barrá-lo no início das eliminatórias, não o escalou mais e só o convocou em uma das duas listas seguintes.

Marcelo paga o preço de não ter avisado que estava liberado pelo departamento médico do Real Madrid antes da penúltima convocação de Dunga.

Thiago Silva é o melhor do mundo na sua posição e não é chamado. Há depoimentos de que Dunga não gostou de publicações do zagueiro no grupo de WhattsApp dos jogadores. Até esqueceria o erro no jogo contra o Paraguai, que causou a eliminação da Copa América. Mas não perdoa quem fala mal do trabalho pelas costas.

Nem todos escrevem o que pensam no WhattsApp, mas muitos não estão felizes. Sempre foi diferente. Jogadores pagavam passagens do próprio bolso e levavam meses para receber o reembolso apenas pelo prazer de jogar na seleção.

Hoje, vários não chegam com a mesma felicidade. A falta de padrão tático e as diferenças de tratamento matam o grupo.

Neymar foi suspenso na Copa América do ano passado e no jogo contra o Uruguai, em março. Nas duas vezes, recebeu liberação para voltar para casa. Já houve jogador lesionado que preferia ficar na concentração, mas se sentiu induzido a ir embora, para não expor a liberdade de um só.

Neymar é a estrela da companhia e pode ter tratamento diferenciado. Mas depende das situações e da receptividade do grupo.

Já houve relatos de que Romário levou mulher à concentração na Copa de 94. Ninguém reclamou, ou por não saber da informação, ou por julgar que o Baixinho merecia o privilégio.

Hoje o grupo não tolera os privilégios de Neymar nem a ideia de que Dunga não tem repertório para fazer a seleção chegar à Copa do Mundo com chance de vencer. Dez entre dez convocados têm certeza de que há mais talento no Brasil do que em qualquer outra seleção. Têm razão.

O problema da seleção hoje não é falta de qualidade. Os jogadores identificaram os problemas antes e melhor do que qualquer analista.


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