Folha de S. Paulo


Nosso destino depende da sorte?

Martinho teve uma vida diferente da nossa. Ele foi escravo na vila de Nazaré Paulista no fim do século 18. Seu proprietário, um lavrador nascido em Guarulhos chamado Pedro Gomes Correa, teve mais de uma dezena de filhos e era um membro da classe média senhorial, com um plantel de não mais que cinco escravos. Muito provavelmente, Pedro e seus filhos trabalhavam a terra junto com seus escravos, plantando milho e feijão para subsistência.

Sabemos um pouco mais sobre a vida de Martinho. Apesar de escravo, ele foi casado com uma mulher livre e com sobrenome: Joana Leme. Quando Joana faleceu, em 1787, Martinho foi descrito como escravo pardo. Seria ele um filho ou irmão bastardo de seu senhor? É possível, já que há um escravo Martinho nascido em Guarulhos em 1740 cujo padrinho de batismo foi o pai de Pedro.

De seu casamento, Martinho teve cinco filhos, todos livres, já que nascidos de mãe livre. Podemos apenas especular sobre o relacionamento entre Martinho e seu senhor, mas dois de seus filhos, Anna e Manoel, tiveram como padrinho de casamento um dos filhos do então finado Pedro Gomes Correa, enquanto seu filho Manoel adotou o sobrenome Correa do senhor de seu pai.

O que deve ter passado pela cabeça de Martinho, aos 64 anos, vendo seu filho Manoel Correa Leme livre, casando-se com uma esposa livre? Podemos apenas imaginar. O casamento de seu filho Manoel foi a última notícia que temos de Martinho. Mas sabemos que seu filho Manoel se mudou para Campinas e teve pelo menos quatro filhas. Segundo os livros da paróquia de Campinas, as filhas seriam brancas. Como pequeno lavrador livre em uma vila se desenvolvendo rapidamente, a ascensão social era possível. Maria do Carmo, filha de Manoel, casou-se com um homem de propriedades, viúvo, mais velho, residente em Mogi Mirim. E sua neta Anna casou-se em Limeira aos 17 anos com um fazendeiro rico, um viúvo de 50 anos, dono de um plantel de mais de duas dezenas de escravos e com relações na Corte do Rio de Janeiro.

Então sabemos que a sorte sorriu para alguns descendentes do escravo Martinho.

Sua bisneta Anna teve centenas de descendentes, entre desembargadores, advogados, dentistas, pedagogas, engenheiros, artistas plásticos, empresários, dono de pizzaria, policiais, instrutores de muay thai e até economistas e um pesquisador em busca da cura da malária. Até hoje, todos prazerosamente ignorantes das privações, humilhações e estoicismo de Martinho.

Entretanto, não sabemos o que aconteceu com as outras netas de Martinho. Teriam sobrevivido até a idade adulta? Se sobreviveram, teriam realizado o projeto de ascensão social ou pelo menos de uma vida livre das privações mais básicas?

Por que contamos esta história?

Contamos esta história para lembrar aos muitos leitores que tiveram o privilégio de nascer no endereço certo e cujos pais e avós tiveram vidas de classe média: todos nós podemos estar a apenas algumas gerações daqueles que viveram as terríveis privações da escravidão. Se estamos melhor hoje, em parte pode ser porque tivemos um pouco mais de sorte no meio do caminho.

Não temos como saber, mas é possível que a neta e a bisneta do escravo Martinho que conseguiram ascender socialmente por meio do casamento com viúvos ricos tenham sido abençoadas pela sorte de serem bonitas e saudáveis. A neta feia ou doente de Martinho pode ter se casado com um marido menos desejável, que não conseguia trabalhar porque sempre bêbado; seus filhos podem ter submergido no anonimato da pobreza.

Mas não sabemos, por enquanto. Tanto o pedinte na Praça da Sé quanto o banqueiro da Faria Lima podem ser igualmente descendentes do escravo Martinho. Ou você, leitor. A diferença entre o pedinte e o banqueiro pode ser uma tataravó que era atraente e casou-se com um homem de bens, ou um trisavô que não se abaixou quando os paraguaios atiraram e deixou seus filhos na pobreza.

A verdade é que somos todos conectados de formas que não percebemos no dia a dia. Se temos destinos diferentes, isso é devido tanto ao esforço nosso e de nossos pais quanto à sorte.

O desafio das políticas públicas para reduzir a desigualdade (isto é, para ajudar nossos irmãos e primos que se perderam pelo caminho) é reduzir o papel da sorte no destino das pessoas e ao mesmo tempo premiar o esforço.

Obviamente, evoluímos muito desde os tempos do escravo Martinho. Mas ainda há políticas públicas que servem apenas a parcelas privilegiadas da população —de modo semelhante às políticas colonialistas portuguesas, que garantiam a prerrogativa de Pedro Gomes Correa de escravizar Martinho.

Enquanto alguns brasileiros desfrutam de estabilidade no emprego e podem se aposentar com vencimentos integrais, e até recebem seus salários quando fazem greve, outros milhões não conseguem achar emprego, quanto mais empregos com estabilidade. São regras diferentes para os senhores e os escravos. Ainda hoje, existem brasileiros que crescem bebendo água potável e andando em locais aprazíveis, enquanto outros bebem água insalubre e, de vez em quando, têm de pisar em seu próprio esgoto a céu aberto.

Que chance têm nossos primos e irmãos que brincam perto de canais de esgoto?

Se tiverem sorte, seus organismos vão desenvolver defesas robustas contra doenças crônicas e eles chegarão à vida adulta, saudáveis e produtivos. Se não, podem deixar de se desenvolver física ou intelectualmente e viver uma vida de desemprego, baixos salários e marginalidade.

Em uma sociedade mais justa, o destino dos indivíduos depende menos da sorte. Chegaremos lá quando conseguirmos dar condições mais igualitárias para nossos irmãos e primos desafortunados.


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