Folha de S. Paulo


Por que a economia funciona como o trânsito?

Oswaldo Corneti/Fotos Públicas
Calendário de pagamento do IPVA é definido. Congestionamento de carros e automóveis em São Paulo/SP.
Congestionamento em SP

Podemos estar com pressa e loucos para chegar, mas, quando a luz vermelha do semáforo se acende, freamos e damos passagem aos carros da rua transversal. Sabemos que, mais ou menos um minuto depois, será a nossa vez de atravessar o cruzamento. Como todos seguimos as regras do trânsito, o tráfego flui melhor do que se não houvesse semáforos.

Mas o sistema funciona apenas porque há uma confiança mútua e um entendimento conjunto de que as regras de trânsito serão obedecidas. É essa confiança que permite pisar no breque sem nos preocuparmos se os veículos logo atrás frearão também e que cruzemos a rua sem medo quando a luz verde se acende.

Se não acreditamos no sistema, o tráfego não flui. Se acreditamos que os outros motoristas não seguem as regras de trânsito à risca, reduzimos a velocidade nos cruzamentos para termos tempo de frear, caso necessário; ou relutamos em frear nos sinais vermelhos com medo do carro que vem atrás. Se muitos não seguirem as leis do trânsito, a sociedade toda vai pagar não só por câmeras nos cruzamentos e policiais de trânsito, mas, também, pelos danos materiais e humanos provocados por colisões e atropelamentos. As regras de trânsito e sua internalização pelos motoristas nos permitem chegar a nosso destino mais rapidamente e em segurança.

A coordenação de expectativas e de comportamento também traz benefícios à economia —nas finanças públicas dos Estados e no regime de metas de inflação, por exemplo.

Quando um Estado gasta mais do que arrecada, seu governador vai para Brasília suplicar por recursos do governo federal. Se um grande número de Estados faz isso, o governo federal se sente acuado e cede, providenciando-lhes um bote salva-vidas. Quando isso acontece, governadores que administram suas finanças responsavelmente acabam fazendo o papel de tolos, pois o mau comportamento foi premiado.

Por isso, uma reforma federativa que estabeleça "sinais vermelhos" e punições aos governadores irresponsáveis poderia resultar em uma mudança radical de comportamento. Se cada governador tiver motivo para acreditar que todos os outros gastarão dentro dos limites, também ele gastará dentro dos limites, porque saberá: não conta com a leniência de Brasília e a generosidade dos contribuintes dos outros estados.

Da mesma forma, no sentido de coordenar expectativas e comportamentos, o regime de metas de inflação guarda algumas semelhanças com as leis do trânsito.

Quando o Conselho Monetário Nacional anuncia uma meta de inflação —no Brasil, de 4,5% ao ano—, o bom funcionamento da economia depende da confiança que os agentes econômicos têm no cumprimento dessa meta. O próprio cumprimento dela é mais fácil quando os agentes econômicos confiam que será cumprida.

Quando um banco central não tem dificuldade para convencer os agentes econômicos de que as metas de inflação vão ser cumpridas, temos um banco central com credibilidade. Se o banco central tem credibilidade, as firmas fazem seus ajustes levando em conta que os preços na economia crescerão, em média, na meta de inflação. Assim, pensarão duas ou mais vezes antes de reajustar preços acima da meta, sob o risco de perder seus clientes para competidores ou para outros produtos, cujos preços cresceram menos.

Algumas firmas sempre vão aumentar acima da meta, seja porque seus custos estão crescendo rapidamente, seja porque avaliam que seus produtos são tão bons que serão comprados mesmo a um preço mais alto. Outras vão aumentar abaixo da meta, para roubar clientes dos competidores ou porque seus custos e o de seus competidores se reduziram. Em contraste, se as firmas acham que a inflação será, digamos, de 10% a despeito da meta de inflação ser 4,5%, vão aumentar seus preços em 8%, acreditando que não vão perder clientes!

A credibilidade de um banco central ajuda igualmente nas negociações salariais. Se a meta de 4,5% for crível, sindicalistas podem encarar os membros de suas categorias e afirmar que aquele aumento de 7% representará um ganho real de poder de compra. Eles também vão entender que aumentos maiores, digamos de 20%, provocariam aumento do preço final dos produtos, perda de competitividade e até a destruição de postos de trabalho.

A credibilidade de um banco central não vai eliminar as discordâncias entre sindicatos e empregadores; no entanto, menos incerteza sobre a inflação permite que as discussões foquem em outros aspectos, como qualidade de vida, segurança no local de trabalho, distribuição de lucros e compartilhamento de ganhos de produtividade.

Menos incerteza sobre a inflação futura também facilita a vida de poupadores. Caso acreditem que a inflação será de 4,5% ao ano, podem ter confiança sobre o poder de compra dos seus investimentos em renda fixa, que vão render retornos em um, cinco ou até 30 anos. Isso é verdade para contratos de longo prazo em geral - não só os de dívida, mas também os de trabalho ou de serviços.

A prática de bancos centrais mundo afora é ajustar os juros baseando-se no comportamento da inflação, tanto corrente quanto futura. É o que chamamos de regra de política monetária. Quando a inflação é mais alta que o desejado, o banco central tende a aumentar os juros ou mantê-los altos; quando mais baixa que o desejado, o banco central tende a reduzi-los ou mantê-los baixos.

Há evidências de que bancos centrais que seguem essa regra conseguem com mais facilidade manter a inflação perto de sua meta. Nossa experiência com a Nova Matriz Econômica, quando os juros foram reduzidos subitamente antes que a inflação estivesse na meta, foi didática: a inflação subiu rápido, apesar do controle de preços dos combustíveis e energia elétrica.

Mas também há arte por trás da credibilidade do banco central. A comunicação do banco central e os pronunciamentos e credenciais profissionais de seus oficiais informam poupadores, trabalhadores e empresários sobre a persistência e a energia com que a meta de inflação será perseguida. Quanto melhor a reputação de um banco central, menos ele terá de aumentar os juros quando um choque aumentar a inflação temporariamente. Um aumento pontual já sinalizaria comprometimento com a meta de inflação e desencorajaria as firmas a reajustar seus preços.

Voltemos à comparação com o trânsito: um engenheiro de tráfego que não acredita na obediência às regras de trânsito daria um péssimo presidente para a CET (Companhia de Engenharia de Tráfego). Se uma pessoa cética sobre o assunto fosse apontada, motoristas reconsiderariam seu comportamento, na expectativa de que furar o sinal vermelho deixasse de ser passível de punição.

Um argumento similar vale para os cargos de comando na economia. Um banco central conservador reforça a confiança dos agentes econômicos de que as metas de inflação serão cumpridas. Uma redução sustentável das taxas de juros é hoje possível devido à reputação irretocável de comprometimento com as metas de inflação, independência política e capacidade técnica como macroeconomistas da diretoria do Banco Central do Brasil.

Vamos chegar a nosso destino sem acidentes.

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