Folha de S. Paulo


Por que a PEC que limita os gastos pode ser um novo pacto social?

Pedro Ladeira/Folhapress
Deputados comemoram aprovação da PEC do Teto dos gastos; foram 359 votos favoráveis, 116 contrários e 2 abstenções
Deputados comemoram aprovação da PEC do teto dos gastos federais na Câmara

O nascimento de um novo pacto social está revirando o interior de diversos grupos de interesse. A luta pelo fim dos privilégios, pela implementação de uma ética impessoal, será dura. Mas há uma boa notícia: o primeiro passo para mudarmos essa realidade pode ser a PEC que limita os gastos do governo —que está no Senado como PEC 55 após passar pela Câmara como PEC 241.

O Brasil é o país dos privilégios. Coisa herdada —e aperfeiçoada, como em poucos lugares do mundo— da estrutura social portuguesa do século 14. Desde a sua origem, este é um país em que a chave para o sucesso é ser amigo do rei. Ou, pelo menos, ser amigo de um amigo.

Essa característica foi bem apreendida por grandes escritores do país, tanto na literatura quanto na análise sociológica. Em "Memórias de um Sargento de Milícias" (1852), de Manuel Antônio de Almeida, o ex-funcionário do rei intercede pelo protagonista Leonardo, livrando-o da cadeia; em "Raízes do Brasil" (1936), Sergio Buarque de Holanda relata que, ainda durante a colônia, estrangeiros que vinham ao Brasil fazer negócios se surpreendiam com a quase impossibilidade de empreender sem ter contatos "cordiais" com gente do governo.

Mas não pense você que criticamos, aqui, apenas um passado distante. Os exemplos atuais de grandes e pequenos privilégios são inúmeros.

A quantidade de cargos confiança no Brasil do século 21 é coisa de outro mundo. Muda governo, sai um batalhão de amigos do ex-chefe e já entra outro, formado por funcionários conectados ao atual dirigente. O nepotismo virou crime no século 21 (um pouco tardiamente), mas essa montanha de cargos de confiança é nepotismo dentro da lei.

O funcionário público não tem o seu legítimo direito de greve regulamentado, o que aumenta o poder de barganha da categoria em relação ao restante da sociedade - que, muitas vezes, fica na posição de refém. E, obviamente, nada justifica essa discrepância.

Processar um político é um parto. E as delongas do STF significam uma quase impunidade, que distancia o de facto do de jure.

Os salários e as aposentadorias de grande parcela dos servidores públicos são muito mais apetitosos que os de seus congêneres do setor privado. Competência ou falta dela não afeta rendimentos. Tudo isso, com chance de desemprego praticamente zero. É o que se chama em economia de "almoço grátis": risco baixo com retorno alto.

Por que, nos perguntamos, esse tratamento diferenciado para um grupo específico da sociedade?

E há muitas outras questões assim em aberto:

- Por que o amigo do rei pode tomar empréstimo a juro zero, enquanto o resto da população paga um juro real de 8%?

- Por que há quem se aposente aos 50 anos, se a expectativa de vida não para de crescer?

- Por que alguns profissionais podem, referendados pela lei, se aposentar mais cedo que outros?

- Por que o trabalhador autônomo paga um imposto menor que o contratado, ainda que desempenhe a mesmíssima função no dia a dia?

Uma sociedade na qual o público se confunde com o privado e vice-versa, na qual bons contatos valem mais que a capacidade pessoal e grupos de interesse se apoderam de nacos expressivos do PIB está fadada a ser injusta e subdesenvolvida.

É preciso construir um novo Brasil, enfrentando o poder de organização dos interesses de segmentos determinados.

E A PEC, TEM O QUE A VER COM ISSO?

O acúmulo injusto de parcela significativa da renda nacional passa, em boa medida, pelo desenho atual do Orçamento da União - e não só pela inegável corrupção que toma conta do estado nacional e das manchetes dos jornais.

No modelo adotado hoje, "tudo cabe" no Orçamento. Antes, a conta fechava com impostos, dívida ou impressão de dinheiro. Enquanto os dois primeiros expedientes se esgotaram, o terceiro resultaria em inflação alta e descontrolada, o que ninguém quer mais.

A PEC 55 forçará, por sua vez, juízes brasileiros, que já recebem altos salários, a admitir para a sociedade que, se quiserem ganhar mais, faltará dinheiro para saúde, educação, segurança, transporte, mobilidade, infraestrutura, etc.

As regras previstas no projeto, como no exemplo acima, tendem a escancarar o que a pressão de pequenos grupos de interesses causa à sociedade.

Claro, a PEC não basta para transformar o Brasil num país igualitário. Mas é a chance, trazida por anos de irresponsabilidade com o dinheiro público, de começarmos a mudar a nossa realidade. É a oportunidade que temos em mãos de rever a certeza, reforçada ao longo de séculos, de que mais vale um amigo poderoso que competência e esforço.

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Na sexta-feira (25), às 14h30, promovemos o debate "A PEC é um novo pacto social?".

Debatedores: Lúcia Vânia Abrão, senadora por Goiás; Marcos Mendes, chefe da Assessoria Especial do Ministério da Fazenda; e Oscar Vilhena, colunista da Folha, professor de Direito Constitucional da FGV e fundador da Conectas Direitos Humanos.

Mediação: Carlos Eduardo Gonçalves, o Dudu, economista-chefe do Porque.com.br.

A entrada é franca, mas as vagas são limitadas. Inscreva-se aqui.

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