Folha de S. Paulo


Os verdadeiros golpes

Nossa confusão política não tem desfecho previsível. Tudo pode acontecer. Em meio às dúvidas, só parece evidente o que a presidente Dilma Rousseff explicitou ao se lançar com sofreguidão sobre a Câmara para aliciar deputados dispostos a barrar o impeachment de seu mandato: a perda de condições para governar.

Afinal, se o governo não dispõe de 172 deputados a seu lado –mínimo para o processo de impeachment não avançar na Câmara–, não tem mais apoio para coisa nenhuma. Para assegurar o tal quorum "salvador", porém, o governo se empenha em barganhas, sem nenhum escrúpulo, no Congresso, em que até a essencial pasta da Saúde é tratada como mercadoria.

Esse é o indicador quantificável da ingovernabilidade. O subjetivo está nas manifestações de que a presidente de direito se reconhece incapaz de exercer as funções de chefe de governo e de Estado, terceirizando deveres inalienáveis no posto que ocupa.

A essa situação ela chegou com método, já que tanto a recessão da economia (que deverá acumular retração de 7% a 8% no biênio) como a regressão de importantes indicadores sociais não se devem a má sorte nem a fatores externos ao país. O desemprego tende a 13%; a educação continua com notas sofríveis; os surtos de gripe e zika atestam o recorrente desrespeito da saúde pública aos brasileiros.

A profusão de erros seriados das políticas econômica e regulatória nos últimos anos, acumulada com a soberba das decisões tomadas sem avaliação das consequências, nos trouxe a esta situação caótica. O vírus da degradação já estava incubado desde meados de 2012, mas o governo evitou tratá-lo e ocultou a verdade pensando na reeleição.

O golpe contra o povo, portanto, não se conjuga no singular, como quer a presidente, ao chamar de "golpista" quem pede o impeachment de seu mandato. Conjuga-se no plural, por que são vários golpes. E todos, em comum, abonados por ela e com resultados nefastos. E nem falamos da vasta corrupção que a Lava Jato continua a desvendar.

Falamos de questões objetivas e facilmente observáveis.

Este é o governo responsável pela maior crise econômica da República.

Este é o governo que ridicularizou internacionalmente o Brasil com o que é tido como o maior caso de corrupção no mundo em tempos recentes. Este é o governo que, desesperado com a desordem que provocou, incentiva publicamente, por meio de suas maiores lideranças, o confronto entre brasileiros.

Este é o governo que, acuado pelas ações da Justiça, tenta desqualificar a Operação Lava Jato, que é o que de melhor aconteceu ao país no período recente.

Este é um governo que, para se agarrar ao poder, tenta comprar sem pudor o apoio de políticos, promovendo negociatas que a todos envergonha com gente em quem não confia, pois as promessas estão condicionadas ao resultado da votação do impeachment, como a presidente declarou.

Será possível acreditar que com a seleção dos piores quadros em termos técnicos e morais haja alguma chance para o Brasil?

Sinceramente, se o epílogo desses eventos implicar a continuidade do que aí está, não evitaremos que as sequelas sociais se transformem em males difíceis de curar e configurem o verdadeiro e definitivo golpe contra a esperança e a autoestima de cada brasileiro.

Governabilidade é mais que apoios gravados com etiqueta de preços. Não se refaz com discurso radical nem tratando como rifa de quermesse as contas fiscais. Não se agride a fé pública impunemente.


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