Folha de S. Paulo


Um drible no Mercosul

Além da provação de assistir à humilhante queda da seleção na Copa do Mundo promovida na própria casa a um custo bilionário, o Brasil sofreu outro revés em 2014, potencialmente mais lesivo ao interesse nacional que a goleada de 7 a 1, com o acordo com a China, aprovado pelo Congresso da Argentina no último dia útil de dezembro.

Tal como os alemães na inominável derrota da seleção, a Argentina ignorou a parceria histórica com o Brasil, mediada pelo Mercosul, e foi atrás de seus interesses ao fechar o tratado de investimentos e comércio com a China. As negociações entre a presidente Cristina Kirchner e o líder Xi Jinping foram rápidas: duraram menos de um semestre.

Intitulado Convenio Marco de Cooperación en Materia Económica y de Inversiones, o tratado entre dois dos maiores sócios estratégicos da economia brasileira reforça a urgência de o Brasil se inserir de forma ativa nesse jogo cada vez mais disputado dos grandes acordos.

Depois de se servir das regras do Mercosul (que estabelecem adesão conjunta dos sócios a tratados comerciais com outros blocos e países) para embaraçar negociações de interesse do Brasil, como a que se arrasta com a União Europeia, a Casa Rosada não se fez de rogada ao buscar o que lhe convém: capitais externos, que secaram desde a moratória da dívida da Argentina, em 2001.

Mais amplo do que costumam ser acordos do gênero, a aliança entre Buenos Aires e Pequim abre a possibilidade para que firmas chinesas tenham presença em níveis até hoje inéditos no continente. Segundo os compromissos assinados, os chineses vão investir na geração de energia elétrica, na indústria, na produção de equipamentos ferroviários e até em pesquisas espaciais.

Em contrapartida, as empresas poderão trazer mão de obra da China e importar insumos e equipamentos em condições mais vantajosas que as concedidas a outros parceiros comerciais.

Outra franquia incomum foi a entrega a empreiteiras chinesas, sem licitação, da construção de duas usinas hidrelétricas, igualmente com facilidades alfandegárias exclusivas aos membros do Mercosul.

Seja pelo momento em que tal acordo foi aprovado, seja pela falta de prioridade que o Brasil tem dado à questão da competitividade, o assunto não suscitou os debates que, a nosso ver, deveriam ensejar.

Embora seus efeitos não estejam plenamente mensurados, esse acordo deverá acentuar o já significativo avanço chinês sobre os mercados de empresas brasileiras, sobretudo na América Latina.

Segundo estudos do Iedi, as vendas brasileiras para o Mercosul e a América Latina, entre 2008 e 2012, cresceram, respectivamente, 4,6% e 4,3%, enquanto as exportações chinesas para os dois blocos voaram ao ritmo de 74% e 115%. Tal competição é assimetricamente desigual.

A indústria brasileira vai ressentir-se ainda mais com a expansão chinesa na vizinhança, já que os incentivos previstos nesse acordo permitem que os produtos da China fabricados na Argentina se tornem mais competitivos que os brasileiros. Pode ser um golpe letal para a nossa indústria, dependendo de como reaja o governo brasileiro, e até o nosso produtivo agronegócio pode ser prejudicado.

Tais desdobramentos (ainda potenciais, mas prováveis) decorrem de dois fatores que, juntos, explicam também a decrescente fatia do país no comércio global de manufaturados. O primeiro é externo e vem da agressividade chinesa em novos mercados desde a crise de 2008.

O segundo fator é interno, devido à alienação do Brasil em relação aos grandes acordos comerciais e à dinâmica das cadeias globais de valor –fatores que hoje movimentam o comércio internacional. Esse processo precisa ser revertido. Condições existem. Temos um parque industrial amplo e diversificado. E também estão presentes no país praticamente todos os grupos líderes das redes globais de produção.

O que se deve fazer é tirar proveito do que já temos, removendo os obstáculos, como ônus fiscais, gargalos na infraestrutura e a baixa integração internacional. Mudar tal panorama requer estratégia externa inteligente e desinibida. Não será com um Mercosul capenga, como constata o pragmatismo da Argentina, que se farão as transformações necessárias. Vícios ideológicos não são conselheiros eficazes de nenhuma política externa bem-sucedida.


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