Folha de S. Paulo


Performance de Ronaldo Fraga revela abismos culturais da América Latina

Mauro Franceschetti/Divulgação
Modelo participa de desfile de Ronaldo Fraga na Bienalsur, em Buenos Aires
Modelo participa de desfile de Ronaldo Fraga na Bienalsur, em Buenos Aires

O embate entre uma parcela xiita das artes visuais e outra da indústria da moda que reivindica a roupa como expressão artística caiu em desuso. Pelo menos por uma noite.

Designer brasileiro mais prestigiado nas rodas culturais, o mineiro Ronaldo Fraga aproximou as duas em uma performance nesta quinta-feira (2), em Buenos Aires, durante a Bienalsur. A primeira bienal tem como sede a capital portenha, mas acontece simultaneamente em diversas cidades, de São Paulo a Tóquio.

Curadores e artistas aclamados do circuito pop das artes se reuniram no Museu da Imigração local para ver uma espécie de desfile, no qual modelos transitavam na "passarela" junto a personalidades locais trajados com ideias do estilista sobre a cultura latino-americana.

"Genesis", como foi intitulada essa coleção, não será vendida, mas sim exibida no Muntref Centro de Arte Contemporânea, na capital argentina, antes de ser mostrada em outras cidades. Elevada à condição de objeto artístico, a pesquisa têxtil de Fraga inclui padrões andinos, grafismo indígena e algodão, principal matéria-prima da cultura de moda latina, usado em estado natural.

A apresentação foi criada como crítica à xenofobia e uma ode à diversidade cultural gestada a partir da união dos povos do hemisfério Sul. O local escolhido, um antigo hotel por onde passaram os imigrantes que construíram a Argentina moderna, serviu como ponto de interseção para o discurso.

Para além do inegável esforço de identificar os contornos da latinidade e uni-los em estampas, formas e proporções, a performance iluminou camadas profundas do abismo cultural e político que separa países da América Latina.

Era possível separar quem era argentino e quem não era a partir do termômetro dos aplausos direcionados aos famosos convidados para modelar. Os galeristas Orly Benzacar e Teresa Anchorena, a jornalista pop Maria Freytes e o ex-chefe de governo da cidade, Jorge Telerman, foram algumas das figuras ovacionadas pelos conterrâneos.

O ator Luis Brandoni iniciou a performance lendo texto inflamado e feito sob medida pelo escritor Edgardo Cozarinsky, um dos mais importantes da literatura local, com versos sobre as raízes e a coragem de seu povo. O canto de Charo Bogarín, vista como expoente da música folclórica argentina e cujo trabalho musicaliza as origens indígenas —ela é tetraneta de um cacique guarani—, foi trilha sonora para a performance.

Não fosse a escolha por Ronaldo Fraga, inicialmente vista pela comunidade artística do país com curiosidade e alguma reticência, segundo disse um porta-voz da Bienalsur nos bastidores, a festa seria um retrato portenho sobre a América Latina.

Fraga parece explorar, mesmo que nas entrelinhas, o olhar exótico que os latino-americanos têm sobre as culturas dos próprios vizinhos. Pontualmente, a imagem de Jesus crucificado apareceu em caftãs e camisas, contrapondo a de um orixá, também pregado na cruz.

Lápides com o inscrito "refugiados" foram colados a um look desfilado por um modelo albino, uma referência ao banho de sangue e à segregação racial encrustados na história sem floreios dessas ondas migratórias, mais atuais que nunca.

Cartas de entrada dos imigrantes europeus e africanos, recolhidas nos arquivos do Museu da Imigração, foram escaneadas e impressas no primeiro bloco de roupas. Nas últimas peças, rostos miscigenados se aglomeravam nas estampas, sem nacionalidade aparente.

Numa leitura de moda, Fraga pincelou referências de várias de suas coleções desfiladas na São Paulo Fashion Week, como a "Re-Existência", de verão 2017, e a "Amor", de inverno 2016. Desta última, o estilista aplicou os corações estampados, como se dissesse que em cada latino bate o mesmo coração.

A utopia da integração de nossas ilhas culturais —qual marca argentina usamos, qual última música de reggaeton, ritmo mais ouvido pelos vizinhos, escutamos na boate, qual último filme do ótimo cinema argentino pagamos para ver> qual livro da safra recente de escritores latino-americanos compramos— é o espírito oculto nesta primeira incursão da Bienalsur em terreno "fashion".

Um projeto que também é um esboço do quão embaçadas são as imagens sobre a utilidade da arte e da moda na cabeça dos frequentadores de Veneza, Basel e afins.

Duas convidadas falavam, em inglês, como "nossa, essa [roupa] eu não usaria", ou, "essa sim", espelhando a inaptidão da maioria em reconhecer que trajes podem, em alguns casos, vale dizer, causar o mesmo incômodo de uma tela, uma escultura ou uma instalação.

O namoro dos museus, das bienais e das galerias com a moda ainda é recente, mas se engendrado sem preconceitos, como fazem o MoMa, em Nova York, e o Tate Modern, em Londres, pode derrubar as fronteiras dos artistas visuais e dos estilistas com algum propósito para além da venda.

O jornalista viajou a convite da Bienalsur.


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