Folha de S. Paulo


Pierre Bergé não foi mecenas de Saint Laurent, mas de todo o negócio da moda

Pierre Verdy/AFP Photo
Pierre Bergé (à esq.) e Yves Saint Laurent durante desfile de moda em 1992
Pierre Bergé (à esq.) e Yves Saint Laurent durante desfile de moda em 1992

A moda foi injusta com Pierre Bergé, morto nesta sexta-feira (8), na França, aos 86, em decorrência de uma miopatia (doença muscular). Diferentemente do propagado em filmes e livros, o empresário não foi apenas marido e mecenas de Yves Saint Laurent (1936-2008), mas o homem que fundou as bases do negócio de moda moderno, a união entre a aura exclusivista da alta-costura e o popular mercado de perfumes e, mais tarde, os ideais de fomento à cultura e deselitização das artes.

Grupos de moda como LVMH e Kering talvez não existissem se, no final dos anos 1950, Bergé não tivesse acreditado no experimentalismo como negócio. Anda em desuso sua crença de que deixar a mente criativa voar sem amarras comerciais é a única alternativa para a criação de moda genuína e que o dinheiro é apenas consequência disso. Segue como norte da indústria, porém, seu entendimento sobre a importância de criar um universo de estilo em torno de uma marca.

Foi ele quem expandiu a loucura estética de Saint Laurent para fora da França, levando o tal "empoderamento" de hoje às vitrines dos Estados Unidos e do resto da Europa. As mulheres passaram a usar roupas de alfaiataria –o smoking feminino da marca– não só porque lhes foi criado um conjunto específico, mas porque Bergé fez ele chegar mais barato do que os vestidos nos corpos das mulheres.

Ao lado do então companheiro, de quem se separou nos anos 1980, mas manteve a parceria até a morte do estilista, transformou a moda "pronto a vestir" em produto exportação da França, ao mesmo tempo em que, em 1973, organizou o calendário de desfiles de Paris, cuja realização era desordenada e desconectada das datas de lançamentos do varejo.

Empresário sagaz, soube vender e recomprar fatias da companhia, lucrando com investidas pontuais nos negócios de perfumaria, acessórios e roupas. Em 1989, ele fez da Yves Saint Laurent a primeira "maison" de moda listada na Bolsa de Valores, risco decisivo para a continuidade dos projetos de expansão do mercado de moda global. Transformando a roupa em ativo financeiro, Bergé lançou luz sobre toda a máquina da economia francesa.

Em uma leitura histórica, a mentalidade de Bergé se diferenciou da usada pelo empresário comum a partir da noção de que a moda deveria entregar de volta ao mundo a beleza roubada por ela e assumir a responsabilidade de aproximar culturas, combater o preconceito e promover a igualdade.

O amor de Saint Laurent por Marrocos virou coleção, a lendária "saharienne" (1969), mas também um museu dedicado à arte islâmica gerido e capitaneado por Bergé em Marrakech; a moda plastificou as artes visuais, como no icônico vestido Mondrian, inspirado na obra do artista holandês homônimo, mas abriu as portas para jovens artistas e investimentos em teatros e museus.

Bergé leiloou, um ano após a morte de Saint Laurent, toda a coleção de arte que juntou ao longo da vida ao lado do marido. Comenta-se bastante sobre as cifras milionárias do "leilão do século", como o evento ficou conhecido em 2009, mas pouco sobre o fato de os 367 milhões de euros arrecadados com os legados de Picasso, Henri Matisse e Marcel Duchamp terem virado pesquisas de vacinas contra a Aids, fundos para instituições de combate ao racismo e a preservação do legado da moda.

Em 2010, após o leilão, ele fez parte de um grupo de empresários que salvou da bancarrota o jornal "Le Monde". Entre seus negócios, também havia investimentos em semanários e na revista de cultura LGBT "Têtu".

Autodeclarado de esquerda, Bergé causou regozijo no meio político com doações milionárias e envolvimento nas campanhas das últimas quadro décadas. "Uma parte da nossa memória literária e artística morre com Pierre Bergé" disse o presidente francês Emmanuel Macron. "Um homem excepcional que defendeu a ideia de direitos iguais para todos", escreveu o ex-presidente François Hollande.

O instinto filantropo, aliás, durou até o fim da vida. Nos próximos meses, ele veria a abertura de dois museus, um em Marrakech e outro em Paris, que a Fundação Pierre Bergé-Yves Saint Laurent criou como acervo permanente da grife e de toda a produção de moda global.

A moda nunca compreendeu exatamente os motivos da generosidade de Bergé em financiar a produção artística. Em entrevista a um jornal português, há três anos, ele tentou se fazer entender, e só provou como seu pensamento se distancia do sistema da moda contemporâneo.

"Os homens de negócios vão, mais uma vez, ficar contra mim ao lerem isso, mas é preciso admitir que, se me implico em tantas causas e em tantos apoios a projetos artísticos, é para me fazer perdoar ou para explicar o que é que se deve fazer com o dinheiro. O dinheiro não pode servir apenas para gerar mais dinheiro", disse.


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