Folha de S. Paulo


Crítica é antídoto para moda artificial

Daniel Guimarães/Folhapress
SAO PAULO, SP, 30.03.2014: Montagem da exposição Ocupação Zuzu Angel, no prédio do Itaú Cultural. São ao todo quatro andares do instituto dedicados a documentos, cartas, vestidos e referências que constroem o universo fashion da estilista. (Foto: Daniel Guimarães/Folhapress, Ilustrada) ***EXCLUSIVO FOLHA***
Montagem da exposição Ocupação Zuzu Angel, no prédio do Itaú Cultural em 2014

A APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) lançou nesta semana, em cerimônia no Theatro Municipal, um livro que faz uma retrospectiva das seis décadas da entidade que premia os melhores trabalhos e profissionais do ano em 12 segmentos da arte.

A moda, que em 2015 entrou na lista de manifestações artísticas analisadas e premiadas pelos críticos convidados, ganhou um capítulo na publicação. O texto a seguir é uma versão da análise sobre a crítica de moda brasileira escrita por este colunista para o livro.

*

O leitor pode se perguntar o que diabos fez essa tal moda para constar em um livro que versa sobre a história da arte brasileira por meio dos seus estetas. O que tem de arte nesse tipo de expressão que escraviza o corpo, segrega a sociedade em castas e traveste sua matéria-prima básica, o tecido, com uma fina camada de ideias que podem até emocionar, mas têm como premissa gerar capital?

A resposta talvez esteja no exercício de olhar a mercantilização da arte para compreender a moda em um sentido amplo, um meio de comunicação que utiliza linha e agulha, assim como o pintor usa tinta e pincel, para ou retratar um costume estabelecido e gerar lucro com as roupas, ou criar um novo padrão, fazer conexões sobre o comportamento humano numa base de tecido que, assim como um produto artístico, espera ser apreciado e compreendido pelo espectador.

É no limiar desses dois conceitos que se baseia a crítica de moda contemporânea, um trabalho que evoluiu a passos largos no Brasil a partir da organização de desfiles nos anos 1980, com as apresentações dos grupos paulista, carioca e mineiro de moda, e nos 1990 com o PhytoervasFashion, embrião da São Paulo Fashion Week.

Claro que é possível falar de roupas e de críticas anteriores a essas datas, mas, como nos textos brasileiros era comum a comparação com produções europeias e americanas, o sentido de glamour aristocrático engoliu o espectro cultural da moda nos trópicos.

A costura brasileira pouco falava sobre o país, salvo em raríssimos casos, como o da mineira Zuzu Angel, cuja obra colou nos corpos da alta sociedade temas tão diversos quanto o sertão e a ditadura militar, ou o do paulista Conrado Segreto e sua paixão pela mistura de materiais e volumes.

Foi só depois de nomes como o de Angel e Segreto alcançarem repercussão que estilistas e empresários, mecenas dessas ideias nos diferentes estratos sociais, passaram a enxergar os meandros da cultura brasileira.

Não tardou até surgirem Zoomp, Ellus e Forum, primeiras marcas de jeans a entender as proporções do corpo brasileiro; Ronaldo Fraga, um estudioso da identidade nacional, Mario Queiroz e João Pimenta, questionadores da masculinidade brasileira; e Alexandre Herchcovitch, tradutor da influência do "underground", do sexo e das interseções entre os gêneros sobre os costumes da juventude paulistana.

Falar do Brasil e para ele passou a ser imperativo no início deste século. O complexo de inferioridade que resumiu os anos de subserviência da moda nacional ao estilo europeu se tornou a grande "cafonice", para citar a palavra mais temida entre os que pretendem ver seus panos na rua.

A moda autorreferente que se configurou nos primeiros anos do milênio ganha mais força em um período em que o capital é escasso e os processos se voltam para o quintal dos ateliês.

Enquanto as marcas estrangeiras olham para o próprio passado na tentativa de entender o futuro, os estilistas brasileiros começam a perceber que há muita tinta disponível no país, um polo de bordados, rendas, seda e todo tipo de matéria-prima artesanal valorizada no exterior e que aqui, até pouco tempo, era vista com olhar atravessado.

Em um contexto de retomada, se desenha um dos momentos mais interessantes e difíceis para os jornalistas de moda brasileiros, que precisam discernir a criação genuína da propaganda, as ideias grandiosas daquelas colocadas como novidade.

Ao mesmo tempo, chega ao fim o tempo da assinatura solitária. É fato conhecido que nenhum trabalho de moda, assim como na produção de um filme, é produto de uma única mente criativa.

Há nomes à sombra do estrelismo que precisam, e devem, ser iluminados.Só a crítica atuante pode reconhecer essas nuances da vasta confecção nacional, ainda polarizada geograficamente, e trazê-las para a realidade do país, reconhecendo seu poder econômico e social como fomentadores de riqueza, expressão e, em alguma medida, arte.


Endereço da página: