Folha de S. Paulo


Homens assumem 'território feminino' no comando de bíblias da moda

Mert Marcus/Reprodução
O stylist Edward Enninful, novo diretor de redação da 'Vogue' britânica
O stylist Edward Enninful, novo diretor de redação da 'Vogue' britânica

As mudanças estruturais no sistema da moda, que começaram no ano passado com a contratação das primeiras mulheres para cargos de chefia criativa em marcas lendárias, como Dior e Givenchy, chegaram às revistas especializadas. E não em títulos quaisquer, mas em três versões da "Vogue".

Desde o início do ano, causam espanto e euforia no mercado as contratações em série do ganês Edward Enninful, do português Manuel Arnaut e do italiano Emanuele Farneti para as diretorias de redação das versões britânica, árabe e italiana da revista, respectivamente.

Considerada a bíblia da moda, a editora americana Condé Nast era conhecida por sempre ter mulheres no comando de suas edições internacionais —um dos raros homens a chefiar a publicação foi Franco Sartori, diretor da "Vogue" Itália até 1988.

A lógica é fruto de um pré-julgamento, velado no meio "fashion" e construído no século passado, de que homens não teriam a mesma sensibilidade e "alma feminina" para entender os gostos das mulheres. O inverso, de que o olhar do homem cabia melhor na criação de roupas para o corpo feminino, moldava as decisões dos donos das grifes até pouco tempo.

O sucesso de marcas geridas por mulheres, como a Céline, sob a gestão de Phoebe Philo, e a Chloé, de Clare Waight Keller, sepultaram essa ideia machista nas casas de moda. Ao mesmo tempo, a escalada de sucesso de stylists, diretores de arte e editores de moda do sexo masculino provou o disparate da relação entre o sexo e a função do profissional.

Amplamente divulgada nos jornais e nos sites britânicos, a contratação de Enninful tem peso duplo. Além de ser o primeiro diretor de redação da "Vogue" britânica, o ex-diretor de moda da "W" e da "i-D" também é o primeiro negro no cargo mais disputado dos títulos especializados.

Responsável por executar a primeira "edição negra" da história, em 2008, na versão italiana da revista ainda sob o comando da ex-diretora de redação Franca Sozzani (1950-2016), ele já disse ser a favor de equanimidade racial nas páginas das publicações de moda.

"Se você coloca uma negra em um desfile ou uma campanha, isso não resolve o problema [do racismo implícito no sistema da moda]. Precisamos de professores nas universidades, estagiários, pessoas de diferentes bagagens étnicas em toda as partes da indústria. Isso é realmente uma solução; você ter a mudança de dentro", disse Enninful em uma palestra, no ano passado.

A ideia seria uma mudança substancial no padrão europeu de fazer revistas de moda. Para se ter uma ideia do abismo entre discurso e prática editorial, a "Vogue" britânica demorou 12 anos para estampar uma modelo negra após uma última capa com a supermodelo Naomi Campbell, em 2002. Em 2015, a top Jourdan Dunn estrelou a edição de janeiro da revista.

A contratação de Manuel Arnaut na "Vogue" árabe, a mais importante do Oriente Médio, também é sinal de mudanças importantes na forma de se produzir revistas. No caso dele, tem relação direta com a necessidade de ampliar o olhar sobre as mulheres árabes.

Ele substitui a influente princesa saudita Deena Aljuhani Abdulaziz, que publicou apenas dois números da edição impressa da revista, lançada em março após quase um ano sendo publicada apenas na plataforma on-line.

Arnaut levará a experiência como editor de moda da "Vogue" Portugal, onde iniciou a carreira na Condé Nast, e deve mudar a imagem de uma região lucrativa para as grifes, mas ainda incompreendida por elas do ponto de vista do estilo. A missão do novo chefe, ao que parece, é traduzir a cultura árabe para um verniz ocidental.

A primeira capa da revista, licenciada pela Condé Nast ao grupo editorial Nervora, chamou a atenção do público fashionista ao mostrar a modelo californiana Gigi Haddid coberta com um hijab, o véu muçulmano, todo bordado.

É notória a intenção das revistas em se adequar às demandas dos leitores e servir como retrato de suas mudanças de comportamento e consumo, que sepultaram preconceitos, abriram espaço para as plataformas on-line e, agora, exigem reformas nos modelos editoriais.


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