Folha de S. Paulo


Cartilha de vestimenta da United é prova de como a moda ainda reprime

O caso das duas meninas impedidas pela companhia aérea United de embarcar em um voo de Denver para Minneapolis por estarem vestidas com calças "legging", mostra o quanto as cartilhas sobre os códigos de certo e errado podem reprimir.

Se quisessem voar de graça, elas, sendo filhas de um funcionário da empresa, teriam de se adequar ao manual de vestimenta aplicado aos empregados em serviço. As regras incluem não usar minissaias, decotes e roupas muito justas. Ou seja, expor o corpo.

Esse episódio, ocorrido no domingo (26), gerou críticas pelo possível sexismo embutido nas regras da empresa e por guardar uma visão sexualizada do corpo das adolescentes, que por trajarem o pedaço de lycra colado poderiam, segundo a aérea, chamar a atenção dos passageiros.

A empresa não é o único exemplo do controle sobre o corpo dos outros. A liberdade de expressão propiciada pela moda, que segundo teóricos e imprensa especializada seria o maior legado dessa indústria a partir do século 20, também não encontra eco em igrejas, instituições públicas, escolas e, em casos extremos, até governos.

Em 2010, a França aprovou lei que proíbe muçulmanas de usarem em espaços públicos burcas e niqabs, véus que cobrem o corpo e o rosto, respectivamente. Por mais que a cultura ocidental encare o acessório como símbolo da repressão sofrida por essas mulheres, proibi-lo é usar a mesma ferramenta opressora da qual diz lutar contra.

Após a série de atentados terroristas engendrados por radicais islâmicos, a situação chegou ao extremo de garotas terem seus lenços de cabeça tirados à força nas ruas de Paris. A ordem dirigida a essas meninas, ficou claro, era a de se adequar a um padrão de vestimenta para serem aceitas.

Pedro Diniz/Folhapress
A estudante Marwa Daabak, 20. Muçulmana de origem tunisiana, ela foi abordada por pessoas no metrô por usar o chador. Após o episódio, diz ter comprado outros dez lenços para sua coleção de 120. Pedro Diniz/Folhapress ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
A estudante Marwa Daabak, 20, foi abordada por pessoas no metrô por usar o chador. Após o episódio, diz ter comprado outros dez lenços

Um conceito que não parece distante dos delírios do ditador norte-coreano Kin Jong-un, que em 2013 instituiu uma ditadura da beleza que só permite aos salões de beleza praticarem 18 cortes masculinos e 28 femininos.

E não é preciso ir longe para constatar que, em alguns casos, os espartilhos que prendiam a respiração das mulheres e as camadas de roupas que distinguiam os homens até o início do século passado são usados com nova roupagem e conotação opressora. O significado de respeito pode estar travestido de submissão.

Uma repórter do jornal da Igreja Universal do Reino de Deus publicou, em 2014, uma cartilha com mantras "fashion" que deveriam ser seguidos dentro do Templo de Salomão, complexo faraônico construído na zona leste de São Paulo.

Jeans? Não. Estampas chamativas? Não. A famigerada "legging"? Nunca, "faça disso um mantra na sua vida", dizia um trecho da cartilha que, depois a Folha constatou, é seguida pelas fiéis.

Em várias instituições públicas brasileiras não é permitido entrar de bermuda ou saia com comprimento acima do joelho. Por maior que seja o calor do cerrado, o Congresso Nacional, por exemplo, não autoriza visitantes com essas peças.

Se um homem ou mulher em "trajes menores" quiser assistir às sessões na Câmara, será convidado a comprar na lojinha do congresso uma calça de polipropileno, o TNT usado como toalha de mesa nas festas infantis, para se vestir a caráter. Pelo menos parece mais apropriado à ocasião.


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