Folha de S. Paulo


'Protecionismo e 'brexit' farão bem à moda italiana', diz economista

Não é o comprimento das saias nem a cor da estação os assuntos que tiram o sono dos empresários de moda nesta temporada de desfiles. A dúvida que circula nos bastidores é sobre como as políticas protecionistas e a onda de conservadorismo nos Estados Unidos e no Reino Unido afetarão a produção de luxo no hemisfério Norte.

Um dos poucos economistas a dedicar suas pesquisas ao mercado de vestuário, o italiano Enrico Cietta acredita que um possível distanciamento entre essas duas potências econômicas e o setor manufatureiro da Itália, mão de obra dos artigos de luxo no mundo, fortalecerá a indústria italiana.

"A partir do momento que não for vantajoso negociar com as grandes empresas de moda desses países, a economia local terá de repensar sua produção localmente e fortalecer os elos da cadeia produtiva do próprio país, que hoje é focada no mercado internacional", diz Cietta.

Autor de "A Economia da Moda" —em pré-venda por R$ 55 no site da editora Estação das Letras e Cores—, o economista traça um panorama da produção de artigos de vestuário e aponta erros e acertos das empresas de moda.

Criador de uma nova cartilha de negócios, baseada na relação estreita entre fornecedor e marca, Cietta prestou consultoria para grifes e varejistas, como a Zara, que em algum momento perceberam a necessidade de mudar processos internos.

À Folha, o economista explica o que diferencia a moda de outras áreas da cultura e defende o fim dos estoques de roupas como estratégia para mitigar prejuízos.

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Leia trechos da entrevista:

FOLHA - De que forma o 'brexit' e as promessas de Donald Trump em aumentar taxas de produtos importados pode afetar a moda?
ENRICO CIETTA - Admito com muita resistência que as estratégias protecionistas de alguns países pode beneficiar as indústrias locais de outros, principalmente a da moda italiana. As cadeias nativas vão se tornar mais importantes nos negócios das marcas, que acabarão se aproximando do pequeno fornecedor. A partir do momento que não for vantajoso negociar com as grandes empresas de moda dos países mais conservadores, a economia local terá de repensar sua produção localmente e fortalecer os elos da cadeia produtiva no próprio país, que hoje é focada no mercado internacional.

Mas isso não prejudicaria o próprio fornecedor, já que são as grandes varejistas e a moda de luxo que mantêm as confecções italianas?
Pelo contrário. Infelizmente, a moda italiana se distanciou da produção local. Muitos preferem comprar da China e fazer o acabamento na Itália para ter o selo "made in Italy". A verdade é que quem salvou o 'made in Italy' foram os franceses, que perceberam a importância de uma manufatura de qualidade. A moda masculina de luxo, por exemplo, é quase toda produzida na Itália. Se as marcas italianas voltarem a produzir todo o produto no país, a indústria será fortalecida.

Um dos gargalos na gestão de moda é lidar com estoques e correr o risco de produzir mais peças do que consegue vender. Qual modelo de produção será viável no futuro?
Acredito na indústria 4.0, que é basicamente a capacidade de produzir exatamente o que será vendido a partir de uma demanda. Na moda, algumas empresas já estão testando esse modelo. O cliente olha um produto na internet, vai à loja para conhecê-lo e, só depois da compra, o produto é produzido. A questão é que é preciso criar processos internos para fazer o tempo entre a compra e a entrega ser o menor possível. A [varejista italiana] United Colors of Benetton e algumas empresas americanas já estão adaptando a produção para conseguir chegar num modelo viável.

Essa velocidade não aumentaria o número de casos de trabalho escravo?
Não se houver uma cultura de aproximação entre marca e fornecedor. É preciso entender que os custos que vêm na esteira das acusações de trabalho escravo, tanto econômicos quando de imagem, não compensam. Meu trabalho é fazer com que os gestores de produção pensem a médio e longo prazo. Se uma marca tem relacionamento direto com seu terceirizado e se preocupa com a saúde financeira dessa confecção, dividindo dívidas e os lucros com ela, todos saem ganhando. O problema maior é que os empresários esperam resultados em dois, três anos, quando deveriam pensar numa resposta financeira a partir de dez anos. Você gasta 10 centavos a mais por peça, mas os lucros são maiores no longo prazo.

Há algum exemplo prático desse modelo?
As grifes francesas se aproximam dessa lógica. Nenhum dos grandes grupos de moda, como LVMH e Kering, encomendam mais de 20% da capacidade de produção de um terceirizado. Essa conta impede que o fornecedor busque terceirizar o serviço que deveria executar para suprir a demanda e também não deixa que ele dependa apenas de uma marca para sobreviver. Se um grife responde por mais de 50% do faturamento de um fornecedor, as chances de ele falir se a marca deixar de contratá-lo são altíssimas. Esse cuidado estimula toda a cadeia produtiva.

Em seu livro, você parte do princípio de que a moda é uma área que nem os economistas e nem a indústria cultural entendem ou têm interesse em se aprofundar. Pode explicar esse conceito?
Nas indústrias culturais a moda está na periferia. É que ela não é só mercado, mas também não é só criatividade. A moda é uma indústria híbrida, que precisa da criação para se manter viva, mas tem de ser viável e lucrativa como qualquer empresa. Quando a roupa foi reconhecida como produto cultural houve um 'boom' de grandes criadores de moda, que não dialogavam com o mercado e não tinham tino para negócio. Então a moda se dividiu entre os criadores que não vendem nada e os industriais sem criatividade nenhuma. Hoje, a economia da moda trata do meio entre os dois mundos, de fazer os empresários entenderem a necessidade de investimentos em criatividade e os estilistas trabalharem em conjunto com a produção. Se um segmento comanda o outro, a fórmula não dá certo.

Parece um problema característico do mercado brasileiro.
No Brasil há uma impaciência generalizada dos empresários com seus criativos. Ao mesmo tempo, os donos de marcas abandonam qualquer modelo de negócio que não dê 100% certo, porque não têm a cultura de fazer ajustes nos processos internos. As escolhas podem ser boas, mas as metodologias para aplicarem as mudanças, não. Falta um pouco de planejamento de coleção, que todas as áreas da empresa se perguntem "onde eu quero chegar com essa roupa?" e "por que devo fazê-la?". Falta um mecanismo de trabalho em equipe.


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