Folha de S. Paulo


Moda americana desconstrói bandeira e costura discurso anti-Trump em NY

Enquanto a voz de David Bowie em "This Is Not America" (Isto Não É América) enchia a sede da Calvin Klein na sexta-feira (10), no lado oeste de Nova York, todos os dedos miravam o lado leste, especificamente a Trump Tower, símbolo do poderio de Donald Trump.

O desfile da marca foi um dos inúmeros protestos costurados por estilistas da programação da semana de moda de Nova York, que terminou na quinta-feira (16) como um grande palanque anti-Trump. Também foi a primeira apresentação da grife sob a batuta criativa do belga Raf Simons e, não só por isso, talvez tenha sido a mais relevante do evento inteiro.

Simons, imigrante como a maioria dos estilistas que realmente importam na indústria estado-unidense, optou pelo caminho difícil. Não há mensagens mastigadas impressas em camisetas com o logo CK, mas sim a desconstrução do nacionalismo e da bandeira norte-americana que, na eleição presidencial, virou marca dos republicanos.

Variações de roupa esportiva, de jaquetas "varsity" às blusas sem mangas, foram mescladas a peças da alfaiataria clássica que identifica o trabalho do estilista e de toda a escola belga. Nos bolsos e no acabamento das camisas de mangas compridas, Simons aplicou elementos da indumentária "western", típica da América profunda que elegeu Donald Trump.

É curioso constatar como o uso da bandeira, ferramenta trabalhada por outros estilistas em temporadas anteriores a esta de inverno 2018, assumiu significado oposto à reverência. O invólucro chique costurado pela grife é comercial, não deixa de acariciar o orgulho americano, mas, paradoxalmente, desconstrói o egocentrismo que acompanha a nova imagem dos EUA.

A crítica do estilista passa por esses detalhes, potencializados pela seleção de modelos de diferentes etnias e uma trilha sonora que incluiu, além dos versos de Bowie, o punk de "I Wanna Be Sedated" (Eu Quero Estar Sedado), dos Ramones, e a gaita de "Midnight Cowboy" (Caubói da Meia-Noite), de John Barry - "a vida é feita de partilha", diz um trecho da música.

Uma bandana branca colada ao convite da Calvin Klein era um prenúncio de que a grife, uma das mais americanas do calendário nova-iorquino, não se conformaria em mostrar apenas roupas.

O acessório, feito para envolver os pulsos dos convidados, serviu de símbolo do movimento #tiedtogether (em português, #amarradosjuntos), lançado pelo site Business of Fashion como protesto à política segregacionista de Trump. Além da CK, a ideia foi adotada nos desfiles de etiquetas como Tommy Hilfiger, Diane Von Furstenberg e Prabal Gurung.

'MADE IN ASIA'

Gurung, aliás, integra a casta de estilistas de origem asiática que deu novo gás ao calendário americano na última década. Além dele, que é malaio, o taiwanês Jason Wu e os tailandeses Phillip Lim e Thakoon, um dos protegidos da ex-primeira dama Michelle Obama, integram o time.

O sangue oriental também corre no olimpo das marcas americanas. Os prestigiados designers Vera Wang, Joseph Altuzarra, Alexander Wang e a dupla Humberto Leon e Carol Lim, mentes criativas das grifes Opening Ceremony e Kenzo, são filhos de pais asiáticos.

Após as declarações xenófobas de Donald Trump e o azedume criado por ele com a quebra de uma aliança entre os Estados Unidos e os países banhados pelo Oceano Pacífico, era natural que houvesse uma reação desses designers.

Na coleção de Prabal Gurung, por exemplo, camisetas traziam escritos como "A revolução não tem fronteiras" e "Quebre os muros", referências ao muro que Trump pretende construir na fronteira entre o México e os EUA.

Altuzarra, por sua vez, mesclou guerra e paz em roupas que ora eram estampadas com flores, ora assumiam silhuetas dos anos 1940, memória da Segunda Guerra que, com Trump no poder, é inevitável não reavivá-la.

As cores vermelho e azul -mais uma vez, a bandeira americana é ferramenta política- foram aplicadas em tons fechados, quase sombrios. Em um dos looks, é possível ler a referência à esgrima em um casaco matelassado, como se o estilista convocasse o espectador a desembainhar sua espada.

Críticas diretas também apareceram no desfile da Public School, grife de Dao-Yi Chow, descendente de família oriental, e Maxwell Osborne.

Na plateia, um convidado de moletom atraía as câmeras com uma placa colada às costas na qual se lia "filho de imigrante". Na passarela, moletons e bonés traziamos dizeres "Faça da América Nova York", uma paródia do slogan da campanha de Trump, "Faça a América grande novamente". Peças com as frases "precisamos de líderes" e "essa terra é sua" completaram a coleção.

Se o patriotismo carnavalesco era a mensagem implícita nas últimas coleções das marcas americanas, nesta temporada um desejo de união moldou o discurso da indústria, um palanque que deve ser ampliado nos desfiles de Londres, Milão e Paris, próximas paradas do circuito internacional.


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