Folha de S. Paulo


Como a moda transformou o picho em artigo de luxo

O que para o novo prefeito de São Paulo é vandalismo, para a moda mundial é mina de ouro. O picho, expressão rudimentar do inconformismo com o sistema, é perseguido por João Doria e seu projeto "Cidade Linda" na mesma medida com que marcas de luxo correm atrás dos pichadores mais importantes do mundo para borrar seus legados. Em vez do "cinza doria", são as cores iluminadas e as letras disformes os ingredientes da receita milionária das grifes.

Desde a primeira colaboração com Stephen Sprouse (1953-2004), em 2001, a Louis Vuitton, marca de luxo francesa cujas bolsas passeiam pelo guarda-roupa das elites, viu suas ações dispararem depois de riscar os escritos "bold" fluorescentes do artista americano nas coleções.

Foi o estilista Marc Jacobs quem enxergou o potencial de relacionar a arte urbana aos anseios de mudança trazidos pela virada do milênio. Inverter noções de luxo e costurar essa estética marginalizada, que já tomava a música e as galerias de arte no início do século, foram os grandes legados de Jacobs à frente da Vuitton.

O traço de Sprouse não guarda nenhuma relação com os desenhos elaborados do grafite, tipo de riscado visto pela gestão paulistana como primo chique do picho. Pelo contrário, as linhas do artista são grosseiras e antimoda, características que talvez expliquem o fato de logo terem virado opção "cool" ao monograma clássico da etiqueta, o LV entrelaçado.

Quinze anos depois da Vuitton, a italiana Gucci começou a ressignificar a pichação, bruta e sem nenhum apreço pelo traço bem definido. Na passarela de outono-inverno 2016, na semana de moda de Milão, uma bolsa preta com o nome da marca em alto-relevo apareceu com o escrito "real" respingando tinta de spray.

A peça é uma lembrança bem-humorada do fato de a grife ser uma das mais copiadas do mundo e ter processado, naquele ano, uma loja virtual que vendia falsificações dos seus acessórios.

A bolsa "Real Gucci", idealizada pelo personagem "GucciGhost", apelido do grafiteiro canadense Trouble Andrew, fez sucesso e inaugurou uma parceria sem hora para acabar entre o artista e o então novo diretor criativo da grife, Alessandro Michele.

Os pichos idealizados por Andrew, aplicados em acessórios clássicos e nas roupas de apelo jovem criadas por Michele, viraram febre no mercado de luxo e impulsionaram a retomada do "streetstyle", a moda urbana dos anos 1990.

Ao mesmo tempo, a dupla resgatou dos 1980 o gosto pela personalização, dando aval para consumidores riscarem e decorarem suas peças de grife. Hoje, não há nada mais "cool" do que ter uma jaqueta, uma camiseta ou um acessório de luxo personalizados.

O custo para aderir ao movimento é alto. Algumas das bolsas com o picho grifado custam, nas lojas da marca em São Paulo, R$ 11.970. Há pouquíssimos exemplares disponíveis para compra.

A Gucci colocou mais tinta no molho e contratou quatro artistas, entre eles o próprio Trouble Andrew, para personalizar alas das suas "flagships", no projeto intitulado 4Rooms.

No espaço da etiqueta na loja Dover Street Market de Ginza, um dos bairros da elite de Tóquio, no Japão, paredes e objetos receberam os rabiscos do pichador-celebridade.

PICHADAS NO BAILE

Os casamentos de Louis Vuitton e Gucci com o picho são apenas exemplos duradouros da união entre a moda e a arte "marginal". Nas últimas temporadas, sobram parcerias desse tipo na indústria.

Em 2011, a francesa Hermès lançou uma série de lenços de seda pintados com os traços sinuosos do grafiteiro francês Kongo. Mais uma vez, nada de padrões realistas. A parceria enrolou nos pescoços mais delicados da alta sociedade mosaicos de letras e formas típicas da pichação.

Mesmo tipo de padronagem que o estilista Jeremy Scott imprimiu, em 2015, nos vestidos de sua coleção de inverno para a grife Moschino. No mesmo ano, as popstars Madonna e Katy Perry apareceram pichadas no baile do Metropolitan Museum de Nova York, o MET Gala, esbórnia fashionista mais fotografada do ano, com versões dessa alta-costura urbana de Scott.

Chanel e Céline, grifes francesas também reconhecidas pela clientela de fino trato, mancharam seus legados elegantes com spray, pinceladas e rabiscos. Nas passarelas de Paris de verão 2014, as duas deram gás a uma corrente estética que a moda logo chamou de "artsty".

O "artsy" pichadão está em voga até agora. Neste momento, são vendidas as últimas peças da colaboração entre a marca nova-iorquina Alice+Olivia, da designer Stacey Bendet, e os detentores do espólio de Jean-Michel Basquiat (1960-1988), neoexpressionista mais incensado da sua geração.

Uma saia longa, com várias pichações e desenhos do grafiteiro impressos, é vendida na loja virtual da grife por US$ 1.295, algo em torno de R$ 4.200.

Haja vista o horizonte de cifras coloridas, não haverá tão cedo cinza suficiente para limpar toda essa sujeira na qual a moda se envolveu e, ironicamente, cobriu seus clientes mais abastados.


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