Folha de S. Paulo


A primeira-dama possível

Não parece coincidência que entre um tipo de primeiro damismo e outro, prestes a se revelar nos Estados Unidos, a cinebiografia "Jackie" (2016) tenha estreado naquele país. Assunto mais quente do noticiário de moda, a construção do discurso político por meio das roupas chegou à Casa Branca em 2008, com Michelle Obama, e encontrará em Melania Trump, nova titular do posto de símbolo feminino americano, um ponto de intersecção.

Quando o marido, Donald J. Trump, tomar posse nesta sexta-feira, Melania deverá optar entre assumir um simulacro da aura glamorosa envolta em Jaqueline Kennedy Onassis (1929-1994), protagonista do filme que estreia no Brasil em 2 de fevereiro, ou vestir o que a imprensa americana chamou de "diplomacia sartorial", para definir o visual algo engajado de Michelle.

Das primeiras-damas americanas, a que deixa o cargo hoje foi quem melhor usou o guarda-roupa a seu favor. Bom exemplo é o fato de a alcunha "mulher negra enraivecida", difundida em 2008, pouco antes do pleito que elegeu Obama, ter sido logo substituída pela "primeira-dama mais 'cool' de todos os tempos", em 2009.

Do slogan "sim, nós podemos", popularizado na campanha do marido, ela colheu a imagem de mulher comum, inteligente e que faz suas próprias escolhas. "Sim, eu posso", parecia dizer nas primeiras fotos oficiais, quando apareceu com um vestido preto sem mangas. Nenhuma primeira-dama havia "ousado" tanto.

Em entrevista, chegou a dizer que havia escolhido usar franja no penteado por causa de uma "crise de meia-idade". Afinal, ser uma primeira-dama possível e próxima das mulheres americanas foi sua marca mais importante.

Nos incontáveis momentos de euforia fashion registrados pelas publicações especializadas, não há nenhum em que Michelle não apareça trajando algum "modelo político".

Já na primeira aparição, quando o marido ainda era candidato, foi a um programa de TV usando conjunto de saia, blusa e cardigã da grife americana J. Crew, avaliado em US$ 400 (ou R$ 1.300).

A escolha não seria notícia se a adversária de Obama naquela eleição, a ex-governadora do Alasca, Sarah Palin, não tivesse causado a ira dos eleitores ao gastar US$ 150 mil (cerca de R$ 480 mil) em roupas para sua campanha.

Outro acerto foi a escolha da roupa para a posse do presidente eleito, um vestido do imigrante taiwanês Jason Wu, radicado no Canadá. Wu a vestiria em outras ocasiões, como na segunda posse, em 2012, num jantar oferecido ao primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, em 2016, e no último discurso de despedida do marido, na semana passada.

O mesmo abraço nos imigrantes ela deu na primeira sexta-feira deste ano (6), quando usou um look vermelho do estilista Narciso Rodriguez, filho de imigrantes cubanos, para o último discurso oficial na Casa Branca.

Ela disse: "Para todos os jovens nesta sala e para aqueles que estão assistindo, saibam que este país pertence a vocês, a todos vocês. Se você ou seus pais são imigrantes, saiba que você faz parte de uma orgulhosa tradição americana". Vale lembrar que uma das promessas de campanha de Donald Trump é expulsar centenas de milhares de pessoas em situação irregular no país.

A diplomacia de Michelle foi além das fronteiras americanas. No início de dezembro passado, quando os italianos foram às urnas opinar sobre a reforma de sua Constituição, a primeira-dama usou um longo da marca Gucci, uma das mais emblemáticas do país europeu, no evento cultural mais importante de Washington, a cerimônia do Kennedy Center Honours.

Era a primeira vez que ela trajava uma grife estrangeira em um evento americano, mostrando apoio ao processo democrático em curso na Itália.

Diferentemente de suas antecessoras, com exceção de Hillary Clinton, Michelle abriu a voz e o armário para levantar bandeiras e expressar sua opinião em um cargo comumente visto, não sem razão, como decorativo.

Melania, até agora, aparenta ser apenas um objeto de design. A preferência por grifes italianas e o discurso misógino de seu marido não colaboraram com sua fama e fizeram parte da indústria americana torcer o nariz a ponto de boicotar a ex-modelo e sua família.

A etiqueta americana Ralph Lauren, grife mais vista durante a corrida presidencial, também é a mais cotada para vesti-la nesta sexta. A venezuelana Carolina Herrera e a belga Diane Von Furstenberg também estão no páreo.

Não se trata apenas de uma escolha visual. A nova primeira-dama dirá a que veio, se estará aberta ao diálogo ou se ficará, assim como Laura Bush, mulher do ex-presidente George W. Bush, à sombra do marido. Por enquanto, o último papel parece lhe agradar.

Cabeça baixa, acenos de "miss" e reproduções de falas do marido resumem a imagem subserviente da ex-modelo. Ivanka, filha de Trump e enteada de Melania, deverá ser contrapeso importante.

Jornais americanos já dão como certa a mudança da primogênita e de seu marido para Washington. Rumores dão conta de que ela ocuparia na Casa Branca o escritório destinado às primeiras-damas.

A personalidade reativa, a influência nos negócios da família e o diálogo aberto com empresários e chefes de Estado fazem de Ivanka a "líder perfeita" dos manuais de autoajuda.

Os Estados Unidos perderão a "primeira-dama mais cool", mas, como prêmio de consolação, ganharão a primeira-filha mais perspicaz de sua história.


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