Folha de S. Paulo


Processo contra Versace expõe códigos racistas da moda

Não há um ano sequer que o título "grife é processada por racismo" não circule nos jornais. Seja nas campanhas publicitárias, seja no trato com clientes ou funcionários, virou constante o tratamento desigual dispensado pelas marcas aos negros. O início de 2017 trouxe à tona o método incomum que, supostamente, a Versace utiliza para identificar clientes com pele escura.

De acordo com um ex-funcionário afro-americano, demitido por "não entender o mercado de luxo", segundo justificativa usada para sua dispensa, a grife italiana teria criado um código para os vendedores alertarem uns aos outros sobre a entrada de negros na loja.

A sigla D410, usada para identificar roupas pretas, serviria como aviso secreto no ponto da marca em Pleasanton, na Califórnia (EUA). Incomodado com a recomendação, o funcionário falou ao chefe sobre suas origens africanas e, após a conversa, teria passado a receber tratamento "diferente". No processo, ele ainda afirma que não recebeu pelos dias de trabalho.

Se as acusações forem confirmadas, o episódio mancha ainda mais a imagem da marca, acusada de racismo em julho do ano passado por ter veiculado uma campanha que mostra a top loira Gigi Hadid como mãe de duas crianças negras.

Na foto, publicada no auge do período de agressões sofridas por afrodescendentes em Chicago – a cidade americana é pano de fundo da peça publicitária –, há um homem negro que aparece como pai dos filhos da modelo. Internautas tacharam a imagem de racista por estampar uma mulher de pele clara em vez de dar espaço para alguma das inúmeras modelos negras do mercado de moda.

Divulgação
Gigi Hadid
Gigi Hadid em campanha da Versace

A cor "diferente" também foi problema para as redes americanas de lojas Macy's e Barney's. Em 2013, ambas foram acusadas de racismo por clientes negros detidos pela polícia de Nova York após comprarem itens de luxo. Todos foram liberados sem nenhuma acusação.

Os critérios de "desconfiança" das marcas para acionarem a polícia foram questionadas pela procuradoria local. Um ano depois dos sucessivos chamados policiais, a Macy's pagou mais de R$ 2 milhões para arquivar a investigação, e a Barney's, quase R$ 1,8 milhão.

Não ter uma pele clara também parece incomodar a marca americana Abercrombie & Fitch. A etiqueta foi processada em 2015 por uma ex-funcionária que afirmou ter sido preterida dentro da loja e mandada embora para casa antes do expediente para que os executivos da grife não a vissem quando passassem no estabelecimento no fim do dia. Não há notícia sobre o desfecho do episódio.

Dez anos antes, em 2005, a grife foi sentenciada a pagar R$ 160 milhões de multa por promover o racismo e o sexismo em sua política de contratação de funcionários.

PADRÃO EUROPEU

Questões de raça ainda são um tabu na indústria da moda. Exemplo clássico é a falta de modelos não-brancas em passarelas e campanhas de grifes luxuosas. Ainda que a presença de afrodescendentes, asiáticas e indígenas tenha aumentado neste século, ainda é o padrão branco de olhos claros, construído no passado, o norte das seleções "rigorosas" das marcas.

Conta-se nos dedos as "angels" fora do modelo eurocêntrico escaladas pela grife Victoria's Secret, marca americana reconhecida por deter em seu banco de tops as "maiores beldades do mundo". Também é notória a falta de representatividade das raças em semanas de moda fora do circuito Nova York-Londres-Milão-Paris.

A São Paulo Fashion Week, por exemplo, precisou assinar um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) emitido pelo Ministério Público, em 2009, para sugerir às grifes da programação a terem um mínimo de 10% de afrodescendentes entre as modelos dos desfiles.

Na Ásia, apesar da recente ascensão de modelos orientais, ainda é comum grifes importarem garotas ocidentais e brancas para suas apresentações. Japão, Tailândia e China são alguns dos mercados mais lucrativos para modelos que não conseguem espaço no panteão da moda.

As agências brasileiras, principalmente as de menor porte, têm especialistas de mercado só para enviar garotos e garotas para esses países.

O problema chega ainda no mercado editorial. As famosas "black issues" (edições negras), criadas em 2008 pela ex-diretora da "Vogue" italiana, Franca Sozzani (1950-2016), como forma de protesto pela escassez de diversidade racial nas publicações, virou uma espécie de cota anual a ser cumprida.

Boa parte das principais revistas especializadas dedicam quase todas as suas capas e editoriais à beleza branca, no máximo queimada de sol, para uma ou duas vezes por ano lançarem um "especial negro", que, na verdade, tem o mesmo efeito do código de alerta citado no imbróglio da Versace. Nesse caso, o aviso é direcionado aos leitores, acostumados a receber uma outra imagem.

Termos de Ajustamento de Conduta, critérios de desconfiança enviesados, "black issues", seleções "rigorosas" de modelos e coleções comemorativas -essas que vez ou outra aparecem para dar verniz branco à indumentária dos países africanos- são provas da incapacidade da moda em se desprender dos preconceitos do passado. São audíveis "D140" falados ao pé do ouvido.


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