Folha de S. Paulo


A maior trapaça tributária da história

Donald Trump gosta de declarar que tudo de bom que acontece enquanto ele está no poder –o crescimento do emprego, a alta nos preços das ações, o que quer que seja– é a melhor e a maior coisa de todos os tempos. E é nesse momento que os verificadores de fatos entram em ação e rapidamente provam que o que ele afirma é falso.

Mas aquilo que está acontecendo no Senado agora realmente merece superlativos como os de Trump. O projeto de lei cuja aprovação os líderes republicanos estão tentando forçar esta semana, sem audiências e sem tempo nem mesmo para uma análise básica de seu potencial impacto econômico, é a maior trapaça tributária da história. É uma trapaça tão grande que nem mesmo fica claro quem está sendo trapaceado –os contribuintes da classe média, as pessoas que se incomodam com o deficit orçamentário, ou ambos.

Uma coisa está clara, porém: de uma maneira ou de outra, o projeto de lei em debate prejudicaria a maioria dos norte-americanos. Os únicos beneficiários seriam os ricos –especialmente aqueles cuja renda depende basicamente de seus ativos e não de seu trabalho–, além de advogados e contadores especialistas em tributação, que lucrariam muito descobrindo como explorar todas as lacunas de tributação que o pacote criaria.

O cerne do projeto de lei é uma imensa transferência de renda das famílias de renda baixa e média para as grandes empresas e seus proprietários. As alíquotas de impostos das empresas cairiam acentuadamente, e as famílias comuns se veriam prejudicadas por uma série de mudanças nos impostos que, isoladamente, não teriam grande efeito, mas somadas representam alta significativa dos impostos para quase dois terços dos contribuintes de classe média.

O projeto de lei também revogaria parcialmente o Obamacare, de uma maneira que reduziria fortemente a assistência às famílias de renda mais baixa e elevaria o custo dos planos de saúde para boa parte da classe média.

Você talvez esteja imaginando de que maneira um projeto como esse poderia ser aprovado pelo Senado. E é aí que entra a trapaça.

Embora a estrutura subjacente do projeto envolva elevar os impostos da classe média, ele também oferece algumas isenções temporárias que compensariam os aumentos por algum tempo. Como resultado, nos primeiros anos de vigência do novo código tributário, a maioria das famílias de classe média veria uma redução modesta de seus impostos.

Mas o termo importante aqui é "temporária". Todas essas isenções tributárias minguariam com o tempo ou têm data de expiração marcada. Em 2027, o novo código tributário representaria, como eu disse, um aumento nos impostos da classe média, usado para compensar cortes de impostos que beneficiariam principalmente os ricos.

Por que alguém redigiria um projeto de lei repleto de cláusulas que vigorariam apenas temporariamente? Não existe lógica política ou econômica nisso. O objetivo é tentar criar ambiguidade, abrindo um espaço para que os políticos possam ser dúplices.

Eis como a coisa funciona: se você aponta que o projeto favorece imensamente os ricos e prejudica as famílias comuns, os republicanos mencionarão os primeiros anos de vigência do novo código, quando a guerra de classes que o plano expõe ficará oculta pelas isenções de impostos temporárias, e afirmarão que, não importa o que afirme o plano, essas isenções serão tornadas permanentes pelo Congresso no futuro.

Já se você apontar que o projeto é irresponsável do ponto de vista fiscal, eles rebaterão afirmando que o deficit será aumentado em "só" US$ 1,5 trilhão nos próximos 10 anos, e que o plano não causará alta depois disso –porque, claro, as isenções tributárias terão expirado em 2027, o que aumentará a arrecadação. Afirmar que os impostos da classe média subirão no futuro é crucial para a aprovação do projeto, aliás: apenas projetos de lei que não elevem o deficit depois de 10 anos podem ser aprovados por maioria simples no Senado, evitando manobras regimentais da oposição para postergá-los.

O ponto, claro, é que as duas afirmações dos republicanos não podem ser verdade ao mesmo tempo. O projeto é ou um grande aumento de impostos para a classe média ou uma bomba orçamentárias. Qual dos dois? Ninguém sabe ao certo; é provável que nem mesmo as pessoas que escreveram essa monstruosidade saibam. Mas alguém está sendo trapaceado, e muito.

Oh, e pode ignorar as afirmações de que os cortes de impostos para as grandes empresas estimulariam a economia e, com isso, se pagariam. De 42 economistas ideologicamente diversos pesquisados pela Universidade de Chicago sobre impacto dos planos tributários republicanos, só um considerou que eles resultariam em crescimento econômico substancial, e nenhum discordou da afirmação de que elevariam substancialmente a dívida pública norte-americana.

Assim, é uma trapaça gigantesca. E embora a natureza exata da trapaça possa não estar clara, as famílias norte-americanas comuns terminariam sendo vítimas, de qualquer forma.

Pois suponha que as isenções temporárias sejam mesmo tornadas permanentes, e com isso que o deficit orçamentário dispare em longo prazo. O que aconteceria? Você sabe a resposta: os republicamos subitamente voltariam a fingir que são linha dura contra o deficit e exigiriam uma "reforma de benefícios" - ou seja, cortes nos programas federais de saúde e previdência de que as famílias comuns dependem. Na verdade, eles já estão falando desses cortes - começaram a inverter a jogada antes mesmo de os otários engolirem a isca.

Será que os republicanos conseguirão finalizar essa gigantesca arapuca? O motivo para que estejam apressando a aprovação do projeto no Senado, sem uma única audiência e sem avaliação formal dos órgãos de auditoria do Congresso, é a esperança de conseguir aprovar a coisa antes que alguém perceba.

E questão é determinar se existem senadores republicanos dotados de princípios, e que acreditem que políticas públicas não devem ser implementadas por meio de mentiras, em número suficiente para deter essa jogada suja.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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