Folha de S. Paulo


Mentiras, incoerência e ira na defesa dos cortes de impostos nos EUA

Saul Loeb/AFP
US President Donald Trump speaks about his tax reform proposal prior to meeting with winners of the National Minority Enterprise Development Week Awards Program in the Oval Office of the White House in Washington, DC, October 24, 2017. / AFP PHOTO / SAUL LOEB ORG XMIT: SAL006
O presidente americano, Donald Trump, defende uma agenda de corte de impostos

Uma coisa com a qual você pode contar na política norte-americana do século 21 é que os republicanos mentirão sobre os impostos. Foi o que fizeram no governo de George W. Bush, foi o que fizeram no governo de Barack Obama e continuam a fazê-lo sob Donald Trump.

Mas as coisas são diferentes desta vez. Não é só que as mentiras se tornaram ainda mais descaradas. Agora existe uma mistura de incoerência e ira que não havíamos visto antes —ou que eu pelo menos nunca vi. Hoje em dia, eles ao que parece nem conseguem combinar direito a história falsa que pretendem contar —e começam literalmente a gritar obscenidades quando alguém lhes aponta os fatos.

As mentiras do Partido Republicano sobre impostos em geral envolvem duas questões: quem se beneficia e quem é prejudicado pelas mudanças nos impostos, e que efeito essas mudanças terão sobre o Orçamento.

Assim, quando Bush cortou impostos em 2001 e 2003, ele e seu partido insistiram repetidamente que os cortes de impostos beneficiariam principalmente a classe média. Na verdade, embora o pacote contivesse algumas reduções de impostos para a classe média, por exemplo um aumento na dedução por filho permitida no Imposto de Renda, eles pareciam minúsculos diante dos cortes nas alíquotas de imposto das pessoas de alta renda, do corte dos impostos sobre dividendos, e da revogação do imposto sobre heranças.

No geral, o 1% mais rico dos norte-americanos teve aumento percentual muito maior do que as famílias de classe média em sua renda pós-impostos.

Ao mesmo tempo, o governo Bush recorreu a uma série de truques para esconder o verdadeiro custo fiscal do plano, tais como postergar a entrada em vigor de alguns dos cortes, e fingir que outros expirariam um dia, quando a intenção real era torná-los permanentes.

Quando Obama assumiu, esses truques simplesmente passaram a ser usados de maneira inversa. Os republicanos insistiam, falsamente, que Obama havia decretado "um imenso aumento de impostos" para a classe média; na realidade, no geral ele basicamente cortou os impostos da classe média.

Enquanto isso, seus oponentes insistiam que a disparada do deficit orçamentário causada pelas consequências da crise financeira de 2008 seria permanente, e ridicularizavam as afirmações do governo Obama de que o deficit cairia acentuadamente quando os gastos gerados pela crise parassem e a arrecadação tributária se recuperasse —o que de fato foi exatamente o que aconteceu.

O que mudou, agora? Como nos anos Bush, os republicanos estão afirmando que oferecerão um corte de impostos para a classe média. Mas enquanto Bush de fato cortou os impostos da classe média, mas muito menos do que cortou os impostos dos ricos, os planos atuais do Partido Republicano elevariam os impostos de muitas famílias de classe média e de classe trabalhadora, e reduziriam os impostos dos ricos. (Steven Mnuchin, o secretário do Tesouro, afirma que apenas quem "ganha US$ 1 milhão" veria aumentos de impostos. Isso é o oposto da verdade.)

Oh, e uma nota aos jornalistas. Se vocês tentarem se proteger afirmando que "os democratas dizem" que os impostos da classe média subirão, estarão enganando seus leitores: as estimativas quanto a isso vêm do Comitê Conjunto sobre Tributação, um órgão apartidário do Congresso.

De que modo republicanos como Paul Ryan, o presidente da Câmara dos Deputados, podem fingir que estão ajudando a classe média? Isso depende crucialmente de um novo tipo de truque orçamentário: os projetos de lei de corte de impostos que estão tramitando tanto na Câmara quanto no Senado contêm alguns cortes de impostos para a classe média —mas apenas nos primeiros anos de vigência das novas regras. Essas reduções expirarão.

Um dos exemplos de Ryan é mencionar uma família com dois filhos e renda de US$ 59 mil ao ano: a família em questão de fato pagaria menos impostos no ano que vem. Mas o corte rapidamente se reduziria e, em 2024, ela na verdade estaria pagando impostos mais altos do que paga hoje.

A resposta republicana é afirmar que esses cortes de impostos na verdade não expirarão, e que o Congresso os renovará. Isso é bem dúbio —e mesmo que seja verdade, significaria que os planos tributários do partido elevariam a dívida nacional muito mais do que os republicanos admitem. O que me conduz a toda a questão do deficit orçamentário.

Não muito tempo atrás, os republicanos afirmavam estar profundamente preocupados com os deficit orçamentários. Só tolos e centristas os levaram a sério. Ainda assim, a abrupta mudança para uma completa despreocupação quanto a elevar em trilhões de de dólares a dívida nacional a fim de reduzir os impostos das grandes empresas e dos ricos está causando reação um tanto adversa, até mesmo entre os cínicos. De que maneira os republicanos justificam sua mudança de posição?

Bem, eles parecem não ter combinado que história contarão. Mnuchin continua a afirmar que os cortes de impostos se pagarão, e chegou a dizer que o Departamento do Tesouro divulgou um estudo que confirma o fato (o que é mentira).

Mick Mulvaney, o diretor de orçamento da Casa Branca, reconhece alegremente que o governo está usando truques para aprovar um projeto de lei que cortaria permanentemente os impostos das empresas, mas que ninguém precisa se preocupar. Ou seja, os republicanos parecem estar dizendo o que quer que pareça funcionar.

Assim, o que estamos contemplando aqui é um nível de desonestidade sem precedentes. Mas o que acontece quando alguém explica o que está acontecendo? Quando o senador Sherrod Brown tentou apontar, com razão, que o projeto de reforma tributária republicano que está sendo debatido no Senado favorece pesadamente os ricos, o senador Orrin Hatch explodiu, dizendo que ele deveria parar de "falar merda", e asseverando que cresceu pobre (e isso é relevante por quê, exatamente?)

Lamento, mas essa não é a reação colérica mas compreensível de um homem falsamente acusado de desonestidade. É a raiva que os trapaceiros sempre exibem quando apanhados em suas trapaças.

Mas qual é o objetivo da trapaça? A incoerência dos argumentos que os republicanos vêm oferecendo em defesa de seus planos demonstra que eles não têm por objetivo ajudar a economia, quanto mais as famílias comuns. O objetivo real é tornar os ricos ainda mais ricos, à custa de todo mundo mais. Se afirmá-lo é falar merda, que esteja dito.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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