Folha de S. Paulo


Complacência na eleição de Trump pode matar sistema de saúde dos EUA

Drew Angerer/Getty Images/AFP
WASHINGTON, DC - JULY 26: A protestor holds up a sign during a rally against the GOP health care plan, on Capitol Hill, July 26, 2017 in Washington, DC. GOP efforts to pass legislation to repeal and replace the Affordable Care Act, also known as Obamacare, were dealt setbacks when a mix of conservative and moderate Republican senators joined Democrats to oppose procedural measures on the bill. Drew Angerer/Getty Images/AFP == FOR NEWSPAPERS, INTERNET, TELCOS & TELEVISION USE ONLY ==
Manifestantes em frente à Casa Branca contra Trump e intenção de acabar com Obamacare

Ainda não li o livro de Hillary Clinton, "What Happened" ["O que aconteceu", em tradução livre], mas o que aconteceu na eleição de 2016 me parece bastante claro.

Hoje em dia, os Estados Unidos operam com base em tribalismo extremo: 47% ou 48% do eleitorado vota em qualquer republicano, por mais horrível que seja, e contra qualquer democrata, por melhor que seja.

Isso significa, por sua vez, que coisas pequenas —jornalistas que escolhem agir como adolescentes malvados costumam fazer na escola, atacando candidatos que não achem bacanas; eventos que indiquem um possível escândalo mesmo que nada tenha acontecido— podem fazer pender a balança em favor até do pior candidato imaginável.

E um fator crucial foi a complacência que gente demais demonstrou no ano passado. Porque presumiam que não havia como Trump se tornar presidente, esses eleitores se sentiram autorizados a cuidar de outras preocupações, deixando de lado a eleição. E aí despertaram para descobrir que o pior havia acontecido.

Será que algo semelhante está a ponto de acontecer com o sistema de saúde?

As tentativas republicanas de destruir o Obamacare fracassaram repetidamente, e por motivo muito bom. Os ataques deles à Lei de Acesso à Saúde sempre se basearam em mentiras, e o Partido Republicano jamais conseguiu desenvolver uma alternativa decente ao sistema atual.

O simples fato é que todos os elementos principais da lei de acesso à saúde —proibir que as operadoras de planos de saúde discriminem segurados com base em seus históricos médicos; exigir que as pessoas adquiram planos de saúde mesmo que estejam saudáveis no momento; subsidiar as mensalidades dos planos e expandir a disponibilidade do programa de saúde federal Medicaid para garantir que até mesmo pessoas de baixa renda tenham cobertura— existem porque são necessários.

No entanto, todos os planos propostos pelos republicanos eliminariam ou enfraqueceriam esses elementos cruciais, levando dezenas de milhões de americanos a perderem sua cobertura de saúde, e o fardo mais pesado caberia aos mais vulneráveis.

Tudo isso deveria estar claro para todos, a essa altura. Assim, você talvez se sinta tentado a presumir que nenhum plano que siga essa linha poderia ser aprovado —quanto mais um plano que parecesse ainda pior do que aquilo que vimos até agora. Mas é precisamente porque tanta gente presume que essa ameaça ficou para trás, e voltou sua atenção a outros assuntos, que o sistema de saúde está de novo em perigo.

Os proponentes do projeto de lei Graham-Cassidy, que está tramitando rumo a uma votação no Senado, afirmam estar oferecendo uma abordagem moderada que preserva o lado bom do Obamacare. Em outras palavras, eles estão mantendo a norma republicana de mentir sobre o conteúdo do Obamacare e daquilo que o substituiria.

Na verdade, o projeto Graham-Cassidy é o oposto de moderado. Contém, de forma exagerada e quase caricatural, todos os elementos que tornaram as propostas prévias republicanas tão cruéis e destrutivas. A proposta eliminaria a compra compulsória de planos de saúde, solaparia —se é que não destruiria— as proteções a pessoas com problemas de saúde preexistentes, e cortaria fortemente as verbas destinadas a subsídios e ao Medicaid.

Há algumas ideias novas, mas todas elas são ruins —especialmente uma fórmula para distribuição de verbas que penalizaria os Estados que conquistaram sucesso até agora na redução do número de habitantes desprovidos de cobertura de saúde.

Será que os proponentes da medida —Lindsey Graham, Bill Cassidy, Ron Johnson e Dean Heller— passaram por meses de debate sobre o sistema de saúde sem aprender coisa alguma sobre a questão? Talvez. Mas certamente o resto do Senado, para não falar do público, está mais alerta a falsas promessas republicanas.

Ampla maioria dos eleitores, por margem de quase dois a um, encara favoravelmente o fracasso das tentativas anteriores de revogar e substituir o Obamacare.

Mas há chance real de que o projeto de lei Graham-Cassidy, similar às propostas republicanas anteriores, mas ainda pior, se torne lei, porque as pessoas não estão considerando o assunto com a seriedade necessária.

Como na eleição, partimos de uma base de tribalismo extremo na qual 48 ou 49 senadores republicanos votarão em favor de qualquer coisa, não importa quão horrível, que seu partido tenha aprovado. Ou seja, para fazer do projeto uma lei, seus proponentes precisam apenas de um ou dois votos adicionais.

O principal motivo para que os líderes republicanos não tenham conseguido esses votos em tentativas anteriores foi a indignação e ativismo públicos. Cartas e telefonemas, e manifestações diante de sedes de governo, deixaram claro que muitos norte-americanos estavam cientes do que havia em jogo, e que os políticos que privassem milhões de eleitores de seus serviços de saúde seriam responsabilizados por isso.

Agora, no entanto, o ciclo de notícias seguiu adiante, e a atenção do público se dispersou. Muitos progressistas já haviam começado a aceitar como inatacáveis as realizações do Obamacare, e começaram a trocar os protestos contra as manobras da direita por uma campanha em favor de um sistema de saúde diretamente bancado pelo Estado.

Infelizmente, esse é exatamente o tipo de ambiente no qual os senadores indecisos, que não estariam mais expostos a atenção pública, poderiam ser subornados ou pressionados a votar em favor de um projeto de lei verdadeiramente horrível.

A boa notícia é que, por razões técnicas de procedimento legislativo, o projeto de lei Graham-Cassidy tem de ser aprovado até o final do mês ou será retirado. A má notícia é que aprovação é uma possibilidade real.

Assim, se você quer preservar os imensos ganhos que a Lei de Acesso à Saúde propiciou, se faça ouvir. De outra forma, podemos ter de encarar um novo despertar terrível.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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