Folha de S. Paulo


Comportamento confirma que Trump não é um verdadeiro americano

Vocês se lembram de 2008, quando Sarah Palin costumava falar sobre a "verdadeira América" em sua campanha eleitoral nos Estados Unidos? Ela queria dizer cidadãos rurais e de pequenas cidades —cidadãos brancos, obviamente— que supostamente personificavam a verdadeira essência da nação.

Palin foi severamente criticada por essas declarações, com razão —e não só porque os Estados Unidos reais são uma terra multicultural e multirracial, caracterizada por grandes áreas metropolitanas e não só por pequenas cidades. Um aspecto fundamental daquilo que faz dos Estados Unidos o que eles são é que o país foi construído em torno de uma ideia: a de que todos foram criados em igualdade, e têm garantidos os seus direitos humanos básicos. Se essa ideia for removida, seremos apenas uma autocracia barata em versão gigante.

E talvez seja isso que de fato nos tornamos. Pois a recusa de Donald Trump a criticar os militantes homicidas da supremacia branca em Charlottesville por fim confirma o que vem se tornando cada vez mais óbvio: o atual presidente dos Estados Unidos não é um verdadeiro americano.

Os verdadeiros americanos compreendem que nossa nação é construída em torno de valores, e não do "sangue e terra" dos cânticos dos manifestantes direitistas; que aquilo que nos torna americanos é a tentativa de viver de acordo com esses valores, e não com o lugar ou raça do qual provenham nossos ancestrais. E quando fracassamos em nosso esforço por viver à altura desses ideais, como acontece frequentemente a todos nós, pelos menos percebemos e compreendemos nosso fracasso.

Mas o homem que iniciou sua ascensão política ao questionar falsamente o local de nascimento de Barack Obama —um argumento típico de quem acredita em sangue e terra— claramente não liga a mínima para a abertura e inclusão que sempre foram parte essencial daquilo que somos como nação.

Os verdadeiros americanos compreendem que nosso país nasceu de uma rebelião contra a tirania. Sentem aversão instintiva a tiranos, em qualquer lugar, e simpatizam implicitamente com regimes democráticos, mesmo aqueles com os quais possamos ter desentendimentos no momento.

Mas o atual ocupante da Casa Branca não faz segredo de que prefere a companhia não de líderes democráticos, mas de governantes autocráticos —não só Vladimir Putin, mas pessoas como Recep Tayyip Erdogan, da Turquia, ou Rodrigo Duterte, o líder homicida das Filipinas. Quando Trump visitou a Arábia Saudita, seu secretário do Comércio exultou pela ausência de manifestações hostis, uma ausência garantida pela repressão do regime.

Os verdadeiros americanos esperam que os ocupantes de cargos públicos encarem com humildade as responsabilidades que seus postos impõem. Nossos líderes não deveriam ser tagarelas que se gabam sem parar, assumindo constantemente o crédito por coisas que não fizeram —como Trump ao se vangloriar pela criação de novos empregos, que segue mais ou menos no ritmo deixado por seu predecessor —ou que jamais aconteceram, como o mito de sua vitória no voto popular.

Os verdadeiros americanos compreendem que ser uma figura pública poderosa significa encarar críticas. Isso é parte do trabalho, e os ocupantes de cargos públicos devem tolerar críticas mesmo que acreditem que são injustas. Autocratas estrangeiros podem ter explosões de raiva quando as notícias não são lisonjeiras, ameaçar causar danos financeiros a publicações de que não gostam, falar em encarcerar jornalistas; não é assim que os líderes norte-americanos deveriam se comportar.

Por fim, os verdadeiros americanos que conseguem conquistar postos importantes compreendem que são servos do povo, e que devem usar sua posição para o bem do público. Na prática, porque a natureza humana é o que é, muitos detentores de postos públicos tiraram vantagem financeira deles. Mas sempre compreendemos que isso é errado —e que os presidentes, especialmente, deveriam estar acima disso. Agora temos um líder que está explorando o posto transparentemente para fins de ganho pessoal, de maneiras que obviamente constituem, na prática, uma compra de influência, tanto por malfeitores nacionais quanto por governos estrangeiros.

Em resumo, hoje em dia temos um presidente que é verdadeira, real e profundamente antiamericano, alguém que não compartilha dos valores e ideais que tornaram o nosso país especial.

Ele na verdade está tão alienado da ideia americana que não consegue nem fingir que a segue. Todos sabemos que Trump se sente confortável em companhia dos defensores da supremacia branca, mas é surpreendente que ele nem mesmo lhes faça uma reprimenda amena. Todos sabemos que Putin é o tipo de sujeito de que Trump gosta; mas é notável que ele nem mesmo finja indignação pela interferência russa em nossa eleição.

E por falar nisso: não sei mais do que qualquer outra pessoa sobre o que o inquérito de Robert Mueller revelará sobre o possível conluio entre a Rússia e a campanha de Trump, sobre conexões financeiras questionáveis, possível obstrução da justiça e outros assuntos. Trump vem agindo como se tivesse algo de muito grave a esconder, mas ainda não sabemos o que seria esse algo.

Qualquer que tenha sido o papel que a influência estrangeira tenha desempenhado e continue desempenhando, não precisamos ficar imaginando se uma cabala antiamericana, hostil a tudo aquilo que defendemos e determinada a solapar tudo aquilo que realmente torna grande este país, tomou o poder em Washington. Sim, isso aconteceu, e o nome dessa cabala é governo Trump.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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