Folha de S. Paulo


Compromisso com acesso à saúde é teste para aspirantes a cargos eletivos

Pablo Martinez Monsivais/Associated Press
President Donald Trump pauses while having lunch with services members in the Roosevelt Room of the White House in Washington, Tuesday, July 18, 2017. (AP Photo/Pablo Martinez Monsivais) ORG XMIT: DCPM102
Presidente Donald Trump

Pelo menos por enquanto, a tentativa de revogar a Lei de Acesso à Saúde americana parece encerrada. Atos de sabotagem da parte do vingativo governo Trump continuam a ser um risco, mas —incrível!— existe até uma iniciativa bipartidária para limitar o estrago, com uma aliança entre democratas desejosos de preservar os ganhos recentes e republicanos que temem que o público venha a culpá-los pela queda na cobertura e alta nas mensalidades de planos de saúde.

Isso representa uma imensa vitória para os progressistas, que fizeram um trabalho excepcionalmente bom ao expor os fatos, mobilizar a opinião pública e pressionar os políticos por firmeza em suas posições. Mas o que virá a seguir? Se os democratas retomarem o controle do Congresso e da Casa Branca, o que eles farão com essa oportunidade?

Bem, alguns progressistas —em geral pessoas que apoiaram Bernie Sanders nas primárias presidenciais de 2016— já estão tentando retomar uma das propostas do candidato: a expansão do programa de saúde federal americano Medicare para cobrir todos os cidadãos. Alguns deles querem fazer do apoio à criação de um serviço centralizado de saúde um teste para selecionar os candidatos do Partido Democrata a postos eletivos.

Portanto, parece ter chegado a hora de uma reação progressista. O compromisso para com a cobertura universal de saúde —o que significaria incluir no sistema as pessoas que a lei de saúde de Obama deixou de fora— deveria certamente ser um teste para os aspirantes a cargos eletivos. Mas um sistema centralizado de saúde pública, no qual o Estado centraliza os pagamentos, embora tenha muitas virtudes, não é a única maneira de atingir esse objetivo; seria muito mais difícil aprová-lo, politicamente, do que seus proponentes admitem; e existem prioridades mais importantes.

Veja o mais recente relatório do Commonwealth Fund, uma organização apartidária, comparando o desempenho dos sistemas de saúde dos países avançados. Os Estados Unidos estão na última posição. Os três primeiros colocados são Reino Unido, Austrália e Holanda. E o fato é que os três líderes operam sistemas muito distintos.

O Reino Unido tem um sistema de saúde verdadeiramente socializado. O governo oferece serviços de saúde diretamente por meio do Serviço Nacional de Saúde. A Austrália tem um sistema de cobertura universal de despesas de saúde, basicamente um Medicare [ou SUS] para todos —o nome do programa é, de fato, Medicare. Mas a Holanda emprega o que poderíamos definir como um Obamacare feito da maneira certa: os indivíduos têm a a obrigação de adquirir planos de saúde de operadoras privadas regulamentadas, e recebem subsídios para bancar seus pagamentos.

E o sistema holandês funciona, o que sugere que muito poderia ser realizado por uma melhora gradual na Lei de Acesso à Saúde, de preferência a mudanças radicais. Prova adicional de que esse modelo funciona é a eficiência do Obamacare, por mais imperfeito que seja, nos Estados que se esforçam para fazê-lo funcionar —você sabia que, no Estado de Nova York, apenas 5,4% dos moradores não contam com planos de saúde?

Enquanto isso, a lógica política que conduziu ao Obamacare e não a um Medicare expandido continua valendo.

A questão não é só pagar os operadores de plano de saúde, ainda que induzi-los a aderir à reforma da saúde não tenha sido uma escolha tola, e talvez tenha ajudado a salvar a Lei de Acesso à Saúde. Em um momento crucial, a America's Health Insurance Plans, organização de lobby setorial das operadoras de planos de saúde, e a Blue Cross Blue Shield intervieram para denunciar os planos republicanos.

Uma consideração ainda mais importante é minimizar o desordenamento para os 156 milhões de pessoas que no momento contam com planos de saúde oferecidos por seus empregadores, e em geral estão satisfeitas com essa cobertura. Adotar um sistema centralizado significaria retirar essa cobertura e impor novos tributos; para que isso funcionasse politicamente, seria preciso convencer a maioria dessas pessoas de que elas economizariam mais nas mensalidades do que pagariam em impostos adicionais, e que a nova cobertura seria melhor que a anterior.

Isso pode até ser verdade, mas seria uma ideia difícil de vender em termos políticos. É nessa área que os progressistas realmente desejam investir seu capital político?

Qual seria minha escolha? Eu reforçaria a Lei de Acesso à Saúde, em lugar de substitui-la, ainda que também favoreça fortemente o retorno de alguma forma de prestação pública de serviços de saúde —o que ajudaria a convencer as pessoas a adquirir planos de saúde públicos, e poderia ajudar a introduzir um sistema centralizado no futuro.

Enquanto isso, os progressistas poderiam ir além do sistema de saúde e concentrar sua atenção em outras lacunas do sistema de serviço social dos Estados Unidos.

Quando se compara o serviço social norte-americano ao de outros países ricos, um dado que se destaca é a nossa negligência quanto às crianças. Outros países oferecem longas licenças maternidade e paternidade, subsidiam creches para os filhos de trabalhadores e oferecem ensino pré-escolar a todos os cidadãos, ou quase todos. Nós não fazemos nenhuma dessas coisas. Nossos gastos com as famílias equivalem a um terço da média dos países ricos, e nos equiparam ao México e Turquia.

Assim, se a escolha coubesse a mim, eu estaria falando de melhorar a Lei de Acesso à Saúde e não de rasgá-la e recomeçar do zero, e abriria uma nova frente de batalha progressista quanto aos serviços para a criança.

Não tenho coisa alguma contra um sistema centralizado; eu o apoiaria, se estivéssemos começando do zero. Mas não estamos. Chegar a ele, de onde estamos, seria muito difícil e talvez não conseguíssemos realizar com isso muito mais do que seria possível por meio de uma abordagem mais modesta e gradual. Mesmo idealistas precisam definir prioridades e um Medicare para todos não deveria estar no topo de nossa lista.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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