Folha de S. Paulo


Quem comeu os cérebros dos republicanos?

Kevin Lamarque - 23.mar.2017/Reuters
FILE PHOTO: Protesters demonstrate against U.S. President Donald Trump and his plans to end Obamacare outside the White House in Washington, U.S., March 23, 2017. REUTERS/Kevin Lamarque/File Photo ORG XMIT: TOR245
Manifestantes exigem manutenção do Obamacare

Quando o comandante e chefe do Twitter atacou os republicanos do Senado, acusando-os de largar a briga por não terem revogado a Lei de Acesso à Saúde, ele não poderia estar mais errado. Na verdade, o partido demonstrou dedicação incansável, digna de um zumbi, à causa de privar milhões de norte-americanos de seus serviços de saúde, a despeito de análises devastadoras pelo Serviço Orçamentário do Congresso, denúncias de seus planos por todas as grandes organizações médicas, e desaprovação esmagadora pela opinião pública.

Podemos expressar a situação da seguinte maneira: o senador Lindsey Graham estava inteiramente certo ao descrever o esforço final pela revogação como "uma ideia terrível de política pública e uma situação política horrível", e como "um desastre" e "uma farsa". Mesmo assim, ele votou a favor da medida - como fizeram 48 de seus colegas.

De onde veio essa horda de zumbis, afinal? Quem comeu os cérebros dos republicanos?

Como muita gente apontou, quando o assunto é o sistema de saúde, os republicanos se veem enredados nas mentiras que eles mesmos espalharam. Lutaram contra a ideia da cobertura universal de saúde, e depois denunciaram a Lei de Acesso à Saúde por não oferecer cobertura a número suficiente de pessoas; transformaram em ideologia a ideia de que os beneficiários precisavam pagar por sua cobertura de saúde, e depois criticaram a lei de Obama pelas franquias de valor elevado nos planos de saúde. E quando por fim tiveram a chance de revogar a lei, o contraste entre aquilo que haviam prometido e as propostas que apresentaram na prática gerou repulsa ampla e justificada da parte do público.

Mas a desonestidade gritante da jihad republicana contra o Obamacare ainda requer explicação. Pois ela foi muito além das distorções normais no diálogo político; por sete anos, um partido inteiro insistiu incansavelmente em que branco era preto e alto era baixo.

E esse tipo de comportamento não aparece sem razão. O fiasco republicano quanto à saúde foi a culminação de um processo de deterioração intelectual e moral iniciado quatro décadas atrás, na alvorada do moderno movimento conservador - ou seja, exatamente na era que os conservadores inimigos de Trump apontam como período dourado do pensamento conservador.

Um momento chave veio nos anos 1970, quando Irving Kristol, o avô do neoconservadorismo, adotou a filosofia econômica do supply side, afirmando - apesar de todos dados e experiências disponíveis apontarem o contrário - que cortar impostos aumenta a arrecadação, porque eleva o crescimento econômico. Escrevendo anos mais tarde, ele chegou a se vangloriar por ter permitido que suas convicções políticas se sobrepusessem à integridade intelectual: "Eu não estava certo dos méritos econômicos da ideia, mas não demorei a ver suas possibilidades políticas". Em outro ensaio, ele reconhece alegremente que adotou "uma atitude irresponsável para com o deficit orçamentário", porque o que importava era criar uma maioria republicana, "já que a efetividade política era a prioridade, e não as deficiências contábeis do governo".

O problema é que, quando você aceita o princípio de que é aceitável mentir e isso o ajuda a vencer eleições, fica cada vez mais difícil limitar a extensão das mentiras - ou mesmo recordar a sensação que a busca da verdade desperta.

O colapso intelectual e moral da direita não aconteceu de uma vez só. Por algum tempo, os conservadores continuaram a tentar lidar com problemas reais. Em 1989, por exemplo, a Heritage Foundation propôs um plano para o sistema de saúde muito parecido com o Obamacare. Naquele mesmo ano, o presidente George Bush propôs um sistema de licenças negociáveis para o controle da chuva ácida, uma ideia que terminou por se tornar lei.

Mas é fácil ver a podridão se alastrando, em retrospecto. Comparado a Donald Trump, Bush pai parece um líder exemplar - mas seu governo ainda assim mentiu incansavelmente sobre o avanço da desigualdade. O governo de George Bush filho mentiu o tempo todo sobre seus cortes de impostos, fingindo que o objetivo era beneficiar a classe média, e - caso você tenha esquecido - nos levou a uma guerra sob falsos pretextos.

E o Partido Republicano praticamente inteiro se recusou a condenar as difamações usadas contra o Obamacare.

Considerado esse histórico, o desastre republicano na saúde era inteiramente previsível. Não se pode esperar propostas políticas boas, ou mesmo coerentes, vindas de um partido que passou décadas promovendo mentiras politicamente úteis e negando a avaliação dos especialistas sobre os assuntos em debate.

E quero ser claro: estamos falando dos republicanos, aqui, e não do "sistema político".

Os democratas também trapaceiam intelectualmente sobre algumas questões, em busca de vantagem eleitoral. Mas o governo Obama, em última análise, sempre foi notavelmente claro e honesto sobre suas políticas. E foi especialmente claro sobre o que a Lei de Acesso à Saúde pretendia fazer e sobre a maneira pela qual o faria - e a medida de fato funcionou como previsto.

E agora? Talvez os republicanos trabalhem com os democratas para fazer com que o sistema de saúde funcione melhor - afinal, as pesquisas de opinião pública apontam que os eleitores os culparão, como deveriam, por quaisquer problemas futuros. Mas não seria fácil para eles encarar a realidade mesmo que seu presidente não fosse um fanfarrão que adora intimidar.

E é difícil imaginar que qualquer coisa de bom venha a ocorrer em outras frentes políticas, tampouco. Os republicanos passaram décadas perdendo sua capacidade de pensar corretamente, e não a recuperarão em breve.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página: