Folha de S. Paulo


O sistema de saúde dos EUA ainda está em perigo

Mark Ralston/AFP
Meninas participam de protesto a favor do Obamacare em Los Angeles, Califórnia
Meninas participam de protesto a favor do Obamacare em Los Angeles, Califórnia

Será que os republicanos do Senado destruirão o sistema de saúde dos Estados Unidos usando uma crise constitucional como camuflagem? A questão é séria e se baseia em parte naquilo que aconteceu na Câmara dos Deputados alguns meses atrás.

Como você provavelmente recorda, em março as tentativas de revogar e substituir a Lei de Acesso à Saúde pareciam mortas depois que o Serviço Orçamentário do Congresso divulgou uma avaliação devastadora, que concluía que o projeto de lei dos republicanos da Câmara aumentaria em 23 milhões o número de americanos desprovidos de planos de saúde. Diante de intenso escrutínio da mídia e de forte oposição do público, os líderes da Câmara retiraram o projeto da pauta, e o debate parecia concluído.

Mas a atenção da mídia se deslocou para as mensagens do presidente no Twitter e outros motivos de indignação —e, aproveitando o momento em que os holofotes não estavam apontados para eles, os líderes da Câmara intimidaram e pressionaram número suficiente dos deputados que desaprovavam o projeto para conquistar sua aprovação por margem estreita.

Será que algo semelhante pode acontecer no Senado? Alguns dias atrás, a versão igualmente horrenda do Senado para o projeto de revogação e substituição da lei de saúde - que segundo o Serviço Orçamentário do Congresso elevaria em 22 milhões de pessoas o número de americanos desprovidos de planos de saúde - parecia liquidada. E a atenção da mídia ao assunto se reduziu visivelmente, e foi dirigida a assuntos mais suculentos, como o envolvimento entre Trump e a Rússia.

A mudança de foco é compreensível. Afinal, existem indícios crescentes de que membros do círculo íntimo de Trump de fato conspiraram com a Rússia durante a eleição; enquanto isso, as declarações e tweets de Trump sugerem fortemente que ele está disposto tanto a abusar de seu poder de perdão presidencial quanto a demitir [o procurador público especial] Robert Mueller, o que provocaria uma crise constitucional, para impedir que a investigação sobre o escândalo prossiga.

Mas enquanto esses desdobramentos dominam os noticiários, nem Mitch McConnell e nem a Casa Branca abandonaram seus esforços para privar milhões de cidadãos de sua cobertura de saúde. Na verdade, no sábado o comandante em chefe do Twitter, uma vez mais violando regras de decoro há muito vigentes, apelou à audiência de uma cerimônia militar, a entrada em operações de um novo porta-aviões, para que pressionasse o Senado pela aprovação do projeto.

Isso levou muita gente que conheço a se preocupar com uma repetição do acontecido no trimestre passado: com as atenções da mídia voltadas a outros assuntos, os suspeitos de sempre forçaram a aprovação de um projeto de lei horrível. E a Câmara aprovaria rapidamente quaisquer medidas que o Senado proponha. Por isso, vivemos de fato um momento de grande risco.

Uma preocupação especial é que a mais recente rodada de mentiras sobre o sistema de saúde, combinada à difamação do Serviço Orçamentário do Congresso, possa estar ganhando impulso, politicamente.

A esta altura, a linha mais ou menos oficial do Partido Republicano é que o Serviço Orçamentário do Congresso - cujo diretor, aliás, foi selecionado pelos republicanos - não merece confiança. (O ataque gerou uma carta aberta de protesto assinada por todos os ex-diretores da organização, tanto democratas quanto republicanos.) O que os republicanos vêm enfatizando, especialmente, é que a projeção de grandes perdas de cobertura é absurda, e que, se houver menos pessoas cobertas por planos de saúde, isso acontecerá por escolha delas.

Na verdade, as projeções do Serviço Orçamentário do Congresso sobre a perda de cobertura são totalmente razoáveis, se considerarmos os cortes drásticos que o projeto do Senado prevê nas verbas do Medicaid —26% até 2026 e ainda mais nos 10 anos seguintes. É difícil ver de que maneira alguém como a senadora Shelley Moore Capito, da Virgínia Ocidental, poderia considerar um voto em favor dessa medida, quando 34% dos eleitores não idosos em seu Estado dependem do Medicaid. O mesmo se aplica ao senador Jeff Flake, do Arizona, que tem 29% de seus eleitores cobertos pelo Medicaid.

A lei em vigor oferece subsídios suficientes para que uma pessoa com renda anual de US$ 26,5 mil banque um plano de saúde que cobre 70% de suas despesas médicas, o que, segundo os cálculos do Serviço Orçamentário do Congresso, implica uma franquia de US$ 800. O projeto de lei do Senado reduz a cobertura a 58% das despesas médicas, o que implicaria um valor de franquia de US$ 13 mil, tornando o plano de saúde inútil para todos os fins práticos. Decidir não pagar por um plano de saúde inútil seria realmente uma "escolha"?

Aliás, vocês se lembram de quando republicanos como Paul Ryan costumavam criticar o Obamacare porque os planos de saúde oferecidos sob esse sistema portavam franquias altas demais? É hipocrisia do começo ao fim.

Em resumo, o projeto de lei do Senado é tão cruel e grotesco quanto seus críticos dizem. Mas precisamos continuar lembrando os senadores hesitantes e seus eleitores quanto ao fato, para que eles não sejam carregados pela torrente de mentiras.

Não estou dizendo que deveríamos ignorar a traição de Trump e Putin e todas as suas ramificações: é evidente que o destino de nossa democracia está em jogo. Mas não devemos permitir que o maior de todos os escândalos ocupe toda nossa banda mental: os serviços de saúde de milhões de pessoas também estão em jogo.

E embora os cidadãos comuns por enquanto não possam fazer muito quanto à crise constitucional iminente, seus telefonemas, cartas e protestos ainda podem fazer toda a diferença com relação ao sistema de saúde. Não permitam que os vilões do Senado façam coisas terríveis porque vocês não estavam prestando atenção!

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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