Folha de S. Paulo


Guerra comercial costuma ferir todos os países envolvidos

Pablo Martinez Monsivais/Associated Press
President Donald Trump listens during his meeting with U.S. Mayors and Governors for a Infrastructure Summit in the State Dinning Room of the White House in Washington, Thursday, June 8, 2017. (AP Photo/Pablo Martinez Monsivais) ORG XMIT: DCPM112
O presidente dos EUA, Donald Trump, durante reunião com prefeitos e governadores

Você se lembra de quando Donald Trump declarou que "ninguém imaginava que o sistema de saúde pudesse ser tão complicado"? Foi um raro momento de consciência da parte do comandante do Twitter. É possível que, por um breve momento, ele tenha percebido que não tinha ideia do que está fazendo.

Na verdade, porém, o sistema de saúde não é assim tão complicado. E os planos de "reforma" republicanos são brutalmente simples. Com ênfase em "brutalmente".

Trump pode ser a única pessoa em Washington que não percebe sua essência: tirar os planos de saúde de dezenas de milhões de cidadãos para dar aos ricos um corte de impostos.

Algumas questões de política pública, por outro lado, são realmente complicadas. Uma delas é o comércio internacional. E o maior perigo, quanto a isso, não está em que Trump simplesmente não compreenda as questões. O pior é que ele não sabe que não sabe.

De acordo com o site de notícias Axios, Trump, com o apoio de seu círculo mais estreito de assessores que defendem a ideia de "Estados Unidos acima de tudo", está "completamente determinado" a impor tarifas punitivas às importações de aço e possivelmente outros produtos, a despeito da oposição da maior parte de seu gabinete. Afinal, afirmações de que outros países estão tirando vantagem dos Estados Unidos foram uma das peças centrais de sua campanha.

E o Axios reporta que a Casa Branca acredita que a base de Trump "gosta da ideia" de uma guerra comercial e "vai adorar a briga".

Sim, que ótima maneira de fazer política.

Bem, o que a política comercial tem de tão complicado?

Primeiro, boa parte do comércio internacional moderno envolve bens intermediários —coisas que são usadas na produção de outras coisas. Uma tarifa sobre o aço ajuda os produtores de aço, mas prejudica consumidores de aço mais adiante na cadeia produtiva, como a indústria automobilística. Assim, nem mesmo o impacto direto do protecionismo sobre o emprego está claro.

E há também os efeitos indiretos, o que significa que quaisquer empregos ganhos em um setor protegido por tarifas precisam ser comparados aos empregos perdidos em outros setores. Normalmente, a realidade é que o comércio e a política comercial têm pouco, se algum, impacto sobre o emprego total. Eles afetam o tipo de emprego que temos; mas nem tanto o número total de postos de trabalho.

Suponha que Trump decida impor tarifas sobre uma ampla gama de produtos - digamos uma tarifa geral de 10%, como partidários dele propuseram antes que Trump assumisse. Isso beneficiaria diretamente os setores que concorrem com produtos importados, mas a história não termina aí.

Mesmo que ignoremos os danos a setores que usam insumos importados, a criação direta de empregos propiciada por novas tarifas seria contrabalançada por destruição de empregos indiretos. O FED (Federal Reserve), banco central dos Estados Unidos, temendo pressões inflacionárias, elevaria as taxas de juros. Isso pressionaria setores como a habitação, e também causaria alta do dólar, o que prejudicaria as exportações americanas.

As afirmações de que o protecionismo inevitavelmente causaria recessão são exageradas, mas existem muitos motivos para acreditar que seus efeitos indiretos impediriam que o ganho líquido de empregos na economia persistisse.

E temos de levar em conta a resposta de outros países. O comércio internacional é regido por regras —regras que os Estados Unidos ajudaram a colocar em vigor. Se começarmos a violar essas regras, outros países farão o mesmo, tanto em retaliação quanto por simples imitação. É isso que as pessoas querem dizer quando falam em guerra comercial.

E é tolo imaginar que os Estados Unidos seriam capazes de "vencer" uma guerra como essa. Para começar, estamos longe de ser uma superpotência em termos de comércio internacional —a União Europeia tem papel tão grande quanto o dos Estados Unidos, e é capaz de retaliação efetiva (como descobriu o governo Bush em 2002 ao reimpor tarifas sobre o aço importado). De qualquer forma, comércio não tem a ver com ganhar ou perder. Em geral, ele enriquece as duas pontas da transação, e uma guerra comercial em geral fere todos os países envolvidos.

Não estou usando argumentos puristas em defesa do livre comércio, aqui. O rápido avanço da globalização prejudicou alguns trabalhadores norte-americanos e a alta de importações de 2000 em diante desordenou setores e devastou comunidades. Mas uma guerra comercial sob o comando de Trump só exacerbaria o estrago, por duas razões.

A primeira é que a globalização já aconteceu, e as indústrias dos Estados Unidos hoje são parte de uma cadeia de transações internacionais. Assim, uma guerra comercial hoje prejudicaria comunidades da mesma maneira que a alta do comércio internacional o fez no passado. Há uma velha piada sobre um motorista que atropela um pedestre e tenta consertar o erro dando ré —e atropela a vítima de novo. A política comercial de Trump seria exatamente isso.

Além disso, as tarifas que vêm sendo propostas estimulariam setores que requerem uso intensivo de capital e empregam relativamente poucos trabalhadores por dólar faturado; tarifas como essas distorceriam ainda mais a distribuição de renda, em detrimento dos trabalhadores.

Trump vai mesmo fazer o que promete? Pode ser que sim. Afinal, ele posou como populista na campanha mas toda a sua agenda econômica até agora segue o cardápio padrão dos republicanos, e recompensa as grandes empresas e os ricos enquanto prejudica os trabalhadores.

Por isso, a base republicana certamente gostaria de ver alguma coisa mais parecida com o cara em que acreditava estar votando.

Mas as promessas de Trump quanto ao comércio internacional, embora heterodoxas, eram tão fraudulentas quanto suas promessas sobre o sistema de saúde. Nessa área —como em todas as demais, para falar a verdade—, ele não faz ideia do que está falando. E sua política baseada em ignorância não terminará bem.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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