Folha de S. Paulo


Já podemos admitir que Trump é tão ruim quanto seus críticos previam?

Kevin Lamarque/Reuters
U.S. President Donald Trump refers to amounts of temperature change as he announces his decision that the United States will withdraw from the landmark Paris Climate Agreement, in the Rose Garden of the White House in Washington, U.S., June 1, 2017. REUTERS/Kevin Lamarque ORG XMIT: WAS455
Donald Trump, presidente dos EUA, durante discurso

Depois da surpreendente vitória eleitoral de Donald Trump, muita gente na direita, e até mesmo no centro, tentou defender o argumento de que as coisas não seriam tão ruins. A cada vez que ele demonstrava um mínimo de autocontrole —mesmo que a demonstração se resumisse a ler um discurso sem acrescentar improvisos ou a deixar o Twitter em paz por um ou dois dias—, os sabichões se apressavam a declarar que Trump havia por fim "se tornado presidente".

Será que já podemos admitir que ele é tão ruim quanto —ou mesmo pior que— até mesmo seus mais severos críticos previam? E não estamos falando apenas de seu desprezo pelo Estado de Direito, demonstrado com tamanha clareza no depoimento de James Comey. Nas palavras do estudioso de questões jurídicas Jeffrey Toobin, se isso não é obstrução da Justiça, o que seria? E além disso temos a forma pela qual o caráter de Trump, sua combinação de revanchismo mesquinho e pura preguiça, o torna claramente incapaz de fazer o trabalho que cabe a um presidente.

E isso é um imenso problema. Pense no imenso estrago que este homem causou em apenas cinco meses, e em múltiplas frentes.

Um exemplo é a saúde. Ainda não está claro que os republicanos serão capazes de aprovar um substituto para o Obamacare (ainda que já esteja claro que eles privarão dezenas de milhões de americanos de sua cobertura de saúde). Mas o que quer que aconteça na frente legislativa, há imensos problemas crescendo a cada dia nos mercados de planos de saúde —muitas empresas os estão abandonando, o que deixa algumas regiões do país sem cobertura, enquanto outras operadoras impuseram aumentos pesados nas mensalidades.

Por quê? Isso não acontece, pouco importa o que digam os republicanos, porque o sistema do Obamacare é inoperável. No fim do ano passado, os mercados de planos de saúde estavam claramente se estabilizando. Em vez disso, como explicam as empresas do setor, o problema é a incerteza criada por Trump & companhia, especialmente pelo fato de que eles se recusam a esclarecer se os cruciais subsídios serão mantidos. A operadora de planos de saúde Blue Cross Blue Shield anunciou aumento de 23% nas mensalidades de seus planos, mas declarou que o aumento seria de apenas de 9% se estivesse certa de que os subsídios do governo aos compradores de planos de saúde continuariam.

E por que as empresas não receberam a garantia que procuram? Será porque Trump acredita em suas afirmações de que ele pode causar o colapso do Obamacare e convencer o povo a culpar os democratas? Ou será porque ele está ocupado demais expressando raiva no Twitter e jogando golfe, e não tem tempo para tratar da questão? Difícil dizer, mas nenhuma das duas respostas é a maneira certa de fazer política.

Ou veja a notável decisão de apoiar a Arábia Saudita em sua disputa com o Qatar, um pequeno país que abriga uma imensa base militar americana. Ninguém é bonzinho nessa briga, e por isso mesmo os Estados Unidos têm todo motivo para ficar fora dela.

O que Trump está fazendo, então? Não há sinal de visão estratégica. Algumas pessoas sugerem que é possível que ele não soubesse da grande base dos Estados Unidos no Qatar e de seu papel crucial.

A explicação mais provável de suas ações, que provocaram uma crise na região (e levaram o Qatar aos braços do Irã) é que os sauditas o lisonjearam —o hotel Ritz-Carlton de Riad projetou uma imagem do rosto de Trump com cinco andares de altura—, e os lobistas do país gastaram muito dinheiro no hotel de Trump em Washington.

Normalmente, consideraríamos ridículo sugerir que um presidente americano é ignorante quanto a questões dessa importância e que ele pode ser levado a tomar decisões de política externa tão perigosas por meio de lisonjas tão cruas. Mas será que podemos aceitar que isso é verdade quando estamos falando de um homem que se recusa a aceitar os fatos sobre o número de espectadores em sua posse e se vangloria de sua vitória eleitoral nas circunstâncias menos apropriadas? Sim.

E considere sua recusa de endossar o princípio central da Otan (Organização para o Tratado do Atlântico Norte), a obrigação de ação mútua em defesa dos aliados —uma recusa que causou choque e surpresa até mesmo à equipe de política externa de Trump. Qual foi o motivo disso? Ninguém sabe, mas vale considerar que Trump aparentemente resmungou para os líderes da União Europeia sobre a dificuldade de criar clubes de golfe em seus países. Portanto, a declaração talvez tenha sido causada por simples petulância.

O ponto, uma vez mais, é que tudo sugere que Trump não está à altura do posto de presidente e nem está disposto a se pôr de lado e permitir que outros façam o trabalho da maneira certa. E isso já está começando a ter consequências reais, do desordenamento na cobertura de saúde a alianças arruinadas, passando por uma perda de credibilidade no cenário mundial.

Você pode argumentar que, já que as ações estão em alta, qual é o mal? E é verdade que, embora Wall Street tenha perdido um pouco de seu entusiasmo inicial pela visão econômica de Trump —o dólar caiu à cotação que tinha antes da eleição—, investidores e empresas não parecem estar incorporando às suas estimativas quanto ao valor das ações o risco de uma política realmente desastrosa.

Mas esse risco é muito real há que suspeitar que o dinheiro grosso, que tende a equiparar riqueza e virtude, será o último a perceber o quanto o risco é grande. A presidência dos Estados Unidos é, de muitas maneiras, uma espécie de monarquia eletiva, e um líder desqualificado por seu intelecto e experiência para o posto pode causar grandes estragos ao ocupá-lo.

É isso que está acontecendo agora. E mal passamos a marca dos 10% de duração do primeiro mandato de Trump. O pior ainda está por vir, quase certamente.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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