Folha de S. Paulo


Saída dos EUA de Acordo de Paris é mais um exemplo de ignorância

Michal Cizek/AFP
Activists of environmental group Greenpeace wear the mask of US President Donald Trump while sitting on toilets in front of a banner reading
Ativistas do Greenpeace protestam contra saída dos EUA de acordo sobre clima

Donald Trump acaba de nos tirar do Acordo de Paris sobre o clima, sem qualquer motivo válido. Não quero dizer que sua decisão foi um erro. Quero dizer, literalmente, que ele não ofereceu nenhuma justificação substantiva para a decisão.

Oh, ele jogou alguns números sobre supostas perdas de emprego na mesa, mas ninguém acredita que ele saiba a origem desses números, ou se incomode com ela. Foi só algo que o presidente teve vontade de fazer, e fez.

E eis o problema: o que aconteceu com relação ao acordo sobre o clima não é incomum –e Trump tampouco é muito incomum, entre os republicanos atuais porque o Partido Republicano moderno não se incomoda com substância; não recolhe provas e não realiza análises para formular ou mesmo justificar suas posições de política pública.

Fatos e raciocínio complexo são indesejados, e qualquer pessoa que tente injetá-los na discussão passa a ser o inimigo.

Tome como exemplo outra área importante de política pública, a saúde. Como o Trumpcare foi montado? A administração e seus aliados consultaram especialistas, estudaram experiências passadas de reforma da saúde e tentaram desenvolver um plano que fizesse sentido? Claro que não. Na verdade, os líderes da Câmara dos Deputados fizeram questão de forçar a aprovação de um projeto de lei antes que o Serviço Orçamentário do Congresso, ou aliás qualquer outro observador, fosse capaz de avaliar o possível impacto.

Quando o serviço orçamentário se pronunciou, as conclusões que expressou foram as que se poderia esperar: caso haja fortes cortes no programa federal de saúde Medicaid e nos subsídios para pagamento de planos privados de saúde –tudo isso para propiciar cortes de impostos aos ricos–, muita gente vai perder sua cobertura.

Será que 23 milhões de norte-americanos é uma boa estimativa para o número daqueles que ficarão desprovidos de cobertura? Sim, o número de pessoas que perderão cobertura pode ser de 18 milhões ou 28 milhões, mas certamente a faixa de cálculo é essa.

E como o governo respondeu? Tentando criticar a avaliação. Mick Mulvaney, diretor de Orçamento da Casa Branca, atacou o Serviço Orçamentário do Congresso declarando que seu desempenho ao estimar os efeitos do Obamacare havia sido "miserável". (Alguns erros foram cometidos, é fato, mas em geral a organização se saiu bastante bem.)

Mulvaney também acusou a organização –comandada por um economista que serviu ao governo Bush e foi selecionado por republicanos– de parcialidade política, difamando especialmente o principal especialista do Serviço Orçamentário do Congresso em questões de saúde.

Está bem, Mulvaney. Onde está a sua avaliação do Trumpcare? Você teve recursos mais que suficientes para conduzir um estudo antes de tentar aprovar o projeto. O que você constatou? (Na verdade, a Casa Branca realizou uma análise interna de uma versão anterior do Trumpcare, que vazou no site Politico.com. As previsões dessa avaliação foram ainda mais graves que as do estudo do Serviço Orçamentário do Congresso.)

Mas Mulvaney e o seu partido não estudam questões; eles simplesmente decidem, e contestam a motivação de quem quer que critique suas decisões.

O que nos conduz de volta à política quanto ao clima.

Quando o assunto é a mudança do clima, conservadores influentes vêm se apegando há anos ao que basicamente pode ser definido como uma insana teoria da conspiração: a de que o consenso científico esmagador de que o aquecimento da Terra se deve a emissões de gases causadores do efeito estufa é uma trapaça, de alguma maneira coordenada entre milhares de pesquisadores em todo o planeta.

E a esta altura, a teoria de conspiração é basicamente a posição da linha dominante dentro do Partido Republicano.

Os líderes republicanos realmente acreditam que essa teoria de conspiração é verdade? A resposta, certamente, é que a eles pouco importa. A verdade, como algo que exista em separado e em possível oposição às conveniências políticas, deixou de ser parte de seu universo filosófico.

O mesmo se aplica às afirmações de que tentar controlar emissões causará terríveis danos econômicos e destruirá milhões de empregos. Esse tipo de afirmação, se você considerar bem, é completamente incoerente com tudo aquilo que os republicanos supostamente acreditam sobre a economia.

Eles insistem, afinal, em que o setor privado é infinitamente flexível e inovador; a mágica do mercado é capaz de resolver qualquer problema. Mas em seguida afirmam que esses mesmos mercados mágicos cairiam mortos se fosse criado um modesto imposto sobre as emissões de poluentes, o que é basicamente o que uma política oficial quanto à mudança do clima faria.

Essa atitude não faz sentido algum, e nem deveria. Os republicanos querem continuar queimando carvão, e dirão seja lá o que for para ajudar a garantir que isso aconteça.

E o que acontece na saúde e no clima acontece em todos as demais áreas. Você consegue identificar alguma área importante de política pública na qual o Partido Republicano não tenha deixado a verdade no passado?

A política orçamentária é um exemplo: líderes como Paul Ryan sempre justificaram cortar os impostos dos ricos prometendo que obteriam trilhões de dólares em arrecadação adicional e cortes de custos, de maneiras que eles nunca especificaram.

O Orçamento de Trump e Mulvaney, que não só tira US$ 2 trilhões do nada como conta esse dinheiro duas vezes, leva o jogo a um novo patamar, mas não significa grande mudança.

E alguma dessas coisas importa? O presidente, com apoio de seu partido, vem dizendo absurdos ininterruptamente e destruindo a credibilidade dos Estados Unidos dia após dia. Mas, ei, as ações estão subindo, qual é o problema?

Bem, tenha em mente que Trump ainda não enfrentou crises, exceto as que ele mesmo criou. Como apontou George Orwell muitos anos atrás em seu ensaio "Bem Diante do Nariz", é perfeitamente possível que uma pessoa repita absurdos por muito tempo sem pagar o preço. Mas "cedo ou tarde uma falsa crença esbarra na sólida realidade, e isso em geral acontece no campo de batalha". Que ideia feliz.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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