Folha de S. Paulo


Trumpcare é oposto ao que Trump e demais republicanos prometeram

Carlos Barria/Reuters
O presidente dos EUA, Donald Trump, assina ordem executiva para promover a liberdade de expressão e religiosa, em Washington
Presidente dos EUA, Donald Trump

Houve muitas leis ruins na história dos Estados Unidos. Alguns projetos de lei sofriam de problemas de formulação; outros eram cruéis e injustos; ainda outros foram aprovados sob falsos pretextos. Alguns foram todas essas coisas ao mesmo tempo.

Mas será que algum dia houve qualquer coisa parecida com o Trumpcare, o projeto de lei de reforma da saúde cuja aprovação os republicanos forçaram na Câmara na semana passada? É uma lei pessimamente concebida e repleta de consequências imprevistas. Representa um desastre moral, porque privará dezenas de milhões de pessoas de sua cobertura de saúde para dar aos americanos muito ricos quase US$ 1 trilhão a menos de impostos a pagar.

O que mais se destaca, porém, é o nível de desonestidade quase orwelliano de toda a empreitada. Até onde sei, cada palavra empregada pelos republicanos, a começar de Trump, sobre o projeto de lei —os motivos pelos quais desejam substituir o Obamacare, a maneira pela qual a substituição funcionaria e os resultados da reforma— é uma mentira, e isso inclui artigos, pronomes e preposições.

E o fato de que a maioria dos representantes de um dos grandes partidos políticos dos Estados Unidos tenha aprovado esse pesadelo tem o que a revelar sobre o estado da política no país?

Antes de retomarem a Casa Branca, os republicanos atacaram o Obamacare por muitos motivos. Para começar, acusaram o governo de aprovar o projeto apressadamente, sem o devido debate.

Também afirmaram que os americanos estavam sendo espoliados. As franquias na cobertura de saúde eram altas demais, eles reclamaram; as mensalidades dos planos de saúde idem. Eles prometeram que reduziriam esses custos, para oferecer, como Donald Trump prometeu que faria, cobertura "muito menos cara e muito melhor".

E enquanto isso, eles prometeram que preservariam as coisas que as pessoas aprovam no Obamacare (mesmo que os eleitores não saibam que as coisas de que gostam derivam do Obamacare). Ninguém seria excluído do programa federal de saúde Medicaid; ninguém perderia o acesso a planos de saúde de custo razoável em função de problemas de saúde pré-existentes.

E então veio a realidade do projeto de lei republicano. O Obamacare foi debatido e analisado por muitos meses; o Trumpcare foi montado tão rápido que é difícil acreditar que número significativo daqueles que votaram sua aprovação tenha tido tempo de lê-lo. E o projeto teve sua aprovação acelerada na Câmara a fim de evitar que o Serviço Orçamentário do Congresso tivesse tempo para calcular seu custo, seu efeito sobre a cobertura de saúde, ou qualquer outra coisa.

Mesmo sem a análise devida, porém, fica claro que o Trumpcare viola todas as promessas que os republicanos fizeram quanto à saúde. As franquias subirão, em vez de cair, porque as operadoras de planos de saúde serão liberadas para oferecer cobertura de qualidade inferior. As mensalidades podem cair para algumas poucas pessoas mais jovens, saudáveis e afluentes, mas subirão, em alguns casos violentamente, para as pessoas mais velhas (porque o ágio por idade crescerá), para os doentes (porque a proteção contra discriminação baseada em históricos médicos será removida), e para os pobres (porque os subsídios serão cortados).

Muitas pessoas com problemas de saúde pré-existentes descobrirão que planos de saúde que as atendam ou não existem ou têm custos completamente inacessíveis.

E o Medicaid passará por cortes cada vez maiores ao longo do tempo.

A coisa mais importante, porém, não é só perceber que os republicanos estão violando suas promessas, mas perceber que o fazem propositadamente. Não estamos falando de uma daquelas situações em que as pessoas tentam fazer o que prometeram mas não conseguem. O que temos neste caso é um ato de traição deliberada: tudo o que o Trumpcare contém foi concebido para fazer exatamente o oposto do que Trump, Paul Ryan e os demais republicanos prometeram que faria.

O que traz duas questões: por que eles estão agindo assim e por que acham que escaparão impunes?

Parte da resposta à primeira pergunta é, presumivelmente, cobiça pura e simples. Dezenas de milhões de americanos perderiam sua cobertura de saúde mas —de acordo com estimativas independentes sobre uma versão anterior do Trumpcare— as pessoas com renda anual superior a US$ 1 milhão economizariam em média US$ 50 mil por ano.

E existe uma facção poderosa no Partido Republicano para a qual cortar os impostos dos ricos é mais ou menos a única coisa que importa.

E, de um ponto de vista mais subjetivo, você não tem a impressão de que Donald Trump extrai grande prazer em trapacear as pessoas que cometem o erro de confiar nele?

Quanto ao motivo para que eles acreditem que escaparão impunes: bem, a história recente não prova que isso é verdade? O formato geral daquilo que os republicanos planejavam para a saúde, especialmente para os brancos de classe trabalhadora, já era evidente há muito tempo, mas muitas das pessoas que tinham mais a perder ainda assim votaram em Trump.

Por que os republicanos não deveriam acreditar que é possível convencer esses mesmos eleitores de que as coisas terríveis que acontecerão se o Trumpcare for adotado são, de alguma maneira, culpa dos progressistas?

E, aliás, não podemos confiar em que a mídia comercial resista à tentação de conferir peso igual aos argumentos dos dois lados, e ao ímpeto de produzir reportagens "balanceadas" que ajudarão a ocultar a horrenda realidade do que o Trumpcare causará, caso implementado.

De qualquer forma, serei claro: o que acaba de acontecer com a saúde não deveria ser tratado como apenas mais um exemplo de cinismo nas negociatas políticas. O que tivemos foi um momento do tipo "liberdade é escravidão, ignorância é força". E ele pode ser um prenúncio daquilo que está por vir.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página: