Folha de S. Paulo


Propostas de Trump para comércio internacional esbarram na realidade

Durante a campanha presidencial, Donald Trump falou alto e falou muito sobre como renegociaria os "horríveis acordos comerciais" dos Estados Unidos e traria milhões de bons empregos de volta ao país. Até agora, porém, nada aconteceu. Não só a política comercial de Trump —Trumptrade?— continua invisível na prática como não existe qualquer indicação sobre o que ela poderia envolver.

Assim, na sexta-feira (31) a Casa Branca marcou uma cerimônia na qual Trump assinaria duas novas ordens executivas sobre comércio internacional. O objetivo, presumivelmente, era o de contrabalançar a crescente impressão de que as declarações bombásticas do presidente sobre o comércio eram apenas som e fúria, significando nada.

Infelizmente, as ordens executivas em questão eram, para empregar um termo técnico, sanduíches de nada. Uma solicitava um relatório sobre as causas do deficit comercial; nossa, eles estão começando a estudar essa questão só agora? A outra tratava de algumas questões menores de arrecadação de tarifas, e seu conteúdo aparentemente reproduzia o de uma lei assinada pelo presidente Barack Obama no ano passado.

Não foi surpresa que os repórteres que compareceram ao evento questionassem o presidente não sobre o comércio internacional, mas sobre Michael Flynn e a conexão russa. Com isso, Trump se retirou da sala —sem assinar as ordens. (O vice-presidente Mike Pence as recolheu, e a Casa Branca afirma que foram assinadas mais tarde).

O fiasco encapsula perfeitamente o fracasso cada vez mais aparente da agenda presidencial.

O mundo dos negócios parece ter decidido que Trump é um tigre de papel, quanto ao comércio internacional. O fluxo de transferência de atividades para o México, que se desacelerou brevemente enquanto os executivos de grandes empresas buscavam ganhar a simpatia do novo presidente, foi retomado. E o uso do Twitter como ferramenta de política de comércio parece ter encontrado seu limite.

Os investidores parecem ter chegado à mesma conclusão: o peso mexicano caiu em 16% depois da eleição, mas da posse para cá recuperou quase todo o terreno perdido.

Oh, e na semana passada um anteprojeto para a revisão do Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte) circulou no Congresso; em lugar de mudanças abrangentes naquele que o candidato Trump definiu como "o pior acordo de comércio" já assinado, o governo parecia estar em busca apenas de alguns ajustes menores.

Certamente não é nisso que os partidários de Trump na classe trabalhadora acreditavam estar votando. Por que a política de comércio internacional de Trump pode ser resumida (nas palavras de Binyamin Applebaum, do "New York Times"), como "falar alto e carregar uma bengala curta"? Permita-me oferecer dois motivos.

Primeiro, quando Trump estava vociferando contra os tratados de comércio internacional, ele não fazia ideia do que estava dizendo. (Eu sei: que afirmação chocante).

Por exemplo, quem ouvisse o comandante em chefe do Twitter poderia imaginar que o Nafta é um grande presente dos Estados Unidos aos parceiros, sem coisa alguma em retorno. Na verdade, o México reduziu drasticamente as suas tarifas sobre produtos importados dos Estados Unidos, em troca de cortes menores da parte do parceiro.

Outro exemplo são as repetidas afirmações de Trump de que a China obtém vantagem competitiva ao manipular o valor cambial de sua moeda. Isso era verdade seis anos atrás, mas não agora. Hoje em dia, os chineses intervêm no mercado para manter alta, e não baixa, a cotação de sua moeda.

Falar bobagens sobre o comércio internacional não prejudicou Trump durante a campanha. Mas agora ele está descobrindo que aqueles acordos de comércio imensamente injustos que prometeu renegociar não são tão injustos assim, afinal, o que o deixa sem qualquer ideia sobre o que fazer a seguir.

E isso me conduz ao segundo obstáculo para o Trumptrade. Não importa o que você pense sobre os acordos de comércio do passado, o comércio internacional hoje está profundamente enraizado na economia.

Considere o caso dos automóveis. A esta altura, faz pouco sentido falar sobre uma indústria automobilística dos Estados Unidos, uma indústria automobilística do Canadá e uma indústria automobilística do México. O que temos, em lugar isso, é uma indústria automobilística altamente integrada na América do Norte, na qual veículos e componentes cruzam o continente e quase todos os carros que chegam às concessionárias contêm componentes dos três países.

É preciso que o sistema funcione assim? Não. Basta impor tarifas de 30% sobre as importações e em poucos anos as indústrias nacionais dos três países voltariam a se separar. Mas a transição seria caótica e dolorosa.

Os economistas falam, com bastante motivo, sobre o "choque da China", o efeito desordenador do rápido crescimento das exportações chinesas sobre o emprego e sobre muitas comunidades, entre 1990 e 2007. Mas reverter a globalização agora produziria um "choque Trump" igualmente doloroso, e desordenaria novamente o emprego e a vida de muitas comunidades —e também prejudicaria os interesses das grandes empresas, que estranhamente parecem exercer forte influência sobre o regime supostamente populista do novo presidente.

O ponto é que o Trumptrade está esbarrando na mesma muralha que levou ao colapso do projeto de reforma de saúde de Trump. O presidente assumiu falando muito, seguro de que seus predecessores haviam errado em tudo que fizeram e que ele —e só ele— seria capaz de fazer melhor. E milhões de eleitores acreditaram nisso.

Mas governar os Estados Unidos não é como comandar um reality show. Algumas semanas atrás Trump se lamuriou, dizendo que "ninguém sabia que o sistema de saúde podia ser tão complicado". Agora, podemos suspeitar que ele vai dizer a mesma coisa sobre a política comercial.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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