Folha de S. Paulo


Melhorar o Obamacare passa por gastar mais com o sistema de saúde

Mark RALSTON/AFP PHOTO
Meninas participam de protesto a favor do Obamacare em Los Angeles, Califórnia
Meninas participam de protesto a favor do Obamacare em Los Angeles, Califórnia

"Ninguém sabia que o sistema de saúde podia ser tão complicado". Foi o que declarou Donald Trump três semanas antes de fraquejar em sua promessa de revogar o Obamacare. Em breve ouviremos que "ninguém sabia que uma reforma tributária podia ser tão complicada". E em seguida, talvez, que "ninguém sabia que a política de comércio internacional podia ser tão complicada". E assim por diante.

Na verdade, porém, o sistema de saúde não é tão complicado. Basicamente, é preciso induzir pessoas que não precisam de tratamento médico no momento a cobrir o custo de tratamento daquelas que precisam, com a promessa de que um dia, se necessário, esse favor será retribuído.

Infelizmente, os republicanos passaram oito anos negando furiosamente essa proposição muito simples. E a recusa de pensar a sério sobre como o sistema de saúde funciona é o motivo fundamental para que Trump e seus aliados no Congresso pareçam tão perdedores.

Mas deixe a política de lado por um minuto e pergunte o que poderia ser feito para que o sistema de saúde funcione melhor no futuro.

A Lei de Acesso à Saúde enfrenta a questão fundamental da provisão de serviços de saúde de duas maneiras. Mais de metade da ampliação no número de pessoas cobertas pelo sistema veio da expansão do programa federal de saúde Medicaid —ou seja, da coleta de impostos e do uso dessa arrecadação para pagar as contas médicas dos cidadãos. Essa parte do programa está funcionando bem, exceto nos Estados governados por republicanos que não permitem que o governo federal ajude seus residentes.

Mas o Medicaid cobre apenas as famílias de renda mais baixa. Acima desse nível, a Lei de Acesso à Saúde depende de operadoras privadas de planos de saúde e recorre a uma combinação entre regulamentação e subsídios para manter acessíveis os preços dos planos.

O sistema funcionou bem em alguns lugares. Por exemplo, na Califórnia, que trabalhou seriamente para fazer com que a reforma da saúde funcionasse, o número de pessoas dotadas de planos de saúde disparou, e os preços mensais desses planos continuam bem abaixo das expectativas.

No geral, porém, o número de pessoas saudáveis que optaram pela compra de planos de saúde é baixo demais, a despeito das penalidades impostas àqueles que não participam. Isso acontece em parte porque os valores de franquia dos planos oferecidos são altos, o que os torna menos atraentes.

Como resultado, algumas operadoras abandonaram o mercado de planos de saúde do Obamacare. E isso deixou algumas áreas, especialmente municípios rurais em Estados menores, com pouca ou nenhuma escolha em termos de operadoras.

Não, não se trata de uma "espiral da morte" —os subsídios mantêm acessível o custo dos planos de saúde para a maioria das pessoas, ainda que as mensalidades tenham disparado, e o Serviço Orçamentário do Congresso acredita que os mercados permanecerão estáveis. Mas o sistema pode, e deveria, ser melhorado. Como?

Uma resposta importante seria gastar um pouco mais de dinheiro. O Obamacare provou ser notavelmente barato. O Serviço Orçamentário do Congresso projeta, hoje, que seu custo seja cerca de um terço inferior ao esperado originalmente, e o estima em 0,7% do PIB (Produto Interno Bruto).

A verdade é que o custo do sistema é provavelmente baixo demais. Um relatório do Urban Institute, uma organização apartidária, argumenta que a Lei de Acesso à Saúde sofre "essencialmente de falta de verba", e que ela funcionaria muito melhor —especialmente ao poder oferecer planos de saúde com franquias mais baixas— caso os subsídios concedidos fossem mais generosos.

Adotar a recomendação desse estudo teria custo equivalente a 0,2% do PIB; ou seja, teria custo equivalente à metade dos cortes de impostos para os ricos que os republicanos tentaram, sem sucesso, aprovar como parte do Trumpcare.

E quanto ao problema da falta de concorrência no setor de planos de saúde? Subsídios mais altos ajudariam a atrair mais segurados, o que por sua vez provavelmente atrairia mais operadoras. Mas, como alternativa de segurança, por que não reviver a ideia de uma opção pública —planos de saúde vendidos diretamente pelo governo, para quem assim escolher? No mínimo deveriam existir planos de saúde públicos em áreas nas quais as operadoras privadas de planos de saúde não querem atuar.

Há outras coisas, mais técnicas, que também deveríamos fazer —por exemplo, ampliar o resseguro como compensação às operadoras cujo perfil de risco se provou pior que o esperado. Alguns analistas também argumentam que poderia ser vantajoso transferir os planos de saúde negociados fora dos mercados organizados pelo governo para dentro deles.

Assim, se Trump realmente deseja honrar suas promessas de campanha quanto a melhorar a cobertura de saúde da população, se ele estiver disposto a encarar a realidade de que o Obamacare veio para ficar, há muito que poderia fazer, por meio de melhoras graduais, para levar o o sistema a funcionar melhor. E o presidente obteria grande cooperação dos democratas, como parte do processo.

É desnecessário dizer que não antecipo que isso aconteça. Melhorar o Obamacare requer fazer mais e não menos; significa avançar para a esquerda e não para a direita. Não é isso que os republicanos desejam ouvir.

E a reação inicial do comandante em chefe do Twitter à humilhação que ele sofreu na área da saúde foi previsivelmente vingativa. Ele culpou os democratas, a quem jamais consultou, pelo fracasso político do Trumpcare, previu que o "ObamaCare vai explodir" e que, quando isso acontecer, "a culpa será toda" dos democratas.

Porque o governo dele é responsável por administrar a lei, isso parece uma clara promessa de sabotar os serviços de saúde dos norte-americanos e jogar a culpa pelo desastre nos outros.

A realidade, porém, é que melhorar o Obamacare não seria uma tarefa árdua, e não seria nem mesmo tão complicado assim.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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