Folha de S. Paulo


Declarar Trump presidente ilegítimo é ato de patriotismo

Quando jovem, o deputado federal John Lewis, que representa a maior parte da cidade de Atlanta, colocou sua vida em risco na busca da justiça. Líder crucial do movimento pelos direitos civis, ele sofreu múltiplas agressões.

Na mais famosa dessas ocasiões, Lewis estava liderando a manifestação que veio a ser conhecida como Bloody Sunday e teve seu crânio fraturado em um ataque por um grupo de policiais estaduais. A indignação pública quanto à violência daquele dia ajudou na aprovação da Lei dos Direitos Eleitorais. Agora, Lewis diz que não comparecerá à posse de Donald Trump, que ele considera como presidente ilegítimo.

Como seria de esperar, a declaração provocou reação histérica e caluniosa do presidente eleito —que, é claro, começou sua carreira política ao questionar, repetida e mentirosamente, o direito do presidente Barack Obama a ocupar o posto. Mas Trump —que jamais sacrificou coisa alguma ou assumiu riscos para ajudar os outros— parece sentir hostilidade especial para com os verdadeiros heróis. Talvez ele prefira manifestantes que não terminam espancados?

Mas não vamos falar sobre os desvarios de Trump. Em lugar disso, perguntemos se Lewis tinha o direito de dizer o que disse.É aceitável, em termos morais e políticos, declarar ilegítimo o homem que está a ponto de se mudar para a Casa Branca?

Sim, é. Na verdade, é um ato de patriotismo.

Sob qualquer padrão sensato, a eleição de 2016 foi profundamente questionável. Não se trata apenas dos efeitos da intervenção russa em favor de Trump. Hillary Clinton quase certamente teria vencido se o FBI (Polícia Federal americana) não tivesse difundido a falsa impressão de que tinha em seu poder novas informações negativas sobre ela, apenas alguns dias antes da votação. Foi um delito de conduta grotesco, um ataque à legitimidade, especialmente se comparado à recusa da agência em discutir a conexão russa.

Será que as coisas vão ainda além disso? A campanha de Trump coordenou ativamente as suas atividades com uma potência estrangeira? Será que uma cabala no FBI deliberadamente retardou as investigações sobre essa possibilidade? As histórias lúridas sobre as aventuras de Trump em Moscou serão verdade? Não sabemos, ainda que a repulsiva subserviência de Trump a Vladimir Putin torne difícil descartar essas acusações.

Mas mesmo se levarmos em conta apenas aquilo que sabemos ao certo, nenhum presidente eleito anterior teve menos direito ao título, nos Estados Unidos. Assim, por que não questionaríamos a legitimidade dele?
E falar com franqueza sobre a maneira pela qual Trump chegou ao poder não só cumpre o dever de dizer a verdade mas pode ajudar a limitar esse poder.

Se ao menos o próximo comandante em chefe demonstrasse pelo menos um traço de humildade, de compreensão de que seu dever perante a nação requer algum respeito à forte maioria de norte-americanos que votaram contra ele a despeito da interferência russa e da desinformação do FBI... Mas ele não o faz e nem fará.

Em lugar disso, está saindo ao ataque e ameaçando toda e qualquer pessoa que o critique, e se recusa até a admitir que foi derrotado no voto popular. E está se cercando de pessoas que compartilham de seu desdém por tudo que há de melhor nos Estados Unidos. O que estamos contemplando, muito claramente, é uma caquistocracia norte-americana —o domínio pelos piores.

O que pode ajudar a restringir esse domínio? Bem, o Congresso ainda tem muito poder para cercear o presidente. E seria agradável imaginar que existam legisladores dotados de espírito público em número suficiente para desempenhar esse papel. Em particular, basta que existam três senadores republicanos dotados de consciência e muito poderia ser feito para proteger os valores norte-americanos.

Mas seria muito mais provável que o Congresso decidisse resistir a um Executivo autoritário e descontrolado se os seus membros perceberem que pagarão o preço político caso facilitem as ações dele.

O que isso significa é que Trump não deve ser tratado com deferência pessoal simplesmente por conta da posição que conseguiu tomar. Não devemos conceder a ele o uso da Casa Branca como palanque para intimidação. Não devemos autorizá-lo a se revestir da majestade do posto. Tendo em vista o que sabemos sobre o caráter do sujeito, fica bem claro que lhe conferir respeito que ele não merece só o levará a se comportar mal.

E lembrar às pessoas sobre a maneira pela qual ele chegou ao posto é uma ferramenta importante para impedir que receba respeito que não merece. Lembre-se: dizer que a eleição foi questionável não é calúnia ou uma insana teoria da conspiração: é simplesmente a verdade.

É certo que qualquer pessoa que questione a legitimidade de Trump terá seu patriotismo impugnado - porque é isso que as pessoas da direita sempre dizem quando alguém critica um presidente republicano. (Estranhamente, eles nada dizem sobre ataques a presidentes democratas.) Mas patriotismo significa defender os valores de um país, e não prometer lealdade pessoal ao Querido Líder.

Não, contestar a legitimidade de resultados eleitorais com os quais discordamos não deve se tornar um hábito. Mas o caso atual é excepcional, e precisa ser tratado dessa maneira.

Assim, devemos ser gratos a John Lewis por ter tido a coragem de se pronunciar. Foi a coisa patriótica e heroica a fazer. E os Estados Unidos precisam de heroísmo dessa espécie, agora mais que nunca.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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