Folha de S. Paulo


Donald Trump se beneficiou da falta de transparência

Você se lembra das declarações de impostos de Donald Trump? É inédito que um candidato à presidência tenha se recusado a divulgá-las, já que fazê-lo sugere fortemente que ele tem algo a esconder.

No começo, a direção da campanha de Trump ofereceu desculpas, afirmando que as declarações seriam divulgadas assim que uma auditoria da receita federal norte-americana sobre elas estivesse concluída, ou algo assim. Mas a esta altura está claro que Trump acreditava, e com razão, que podia violar todas as normas, resistir até mesmo à mais básica forma de prestação de contas, e escapar sem pagar por isso politicamente.

A verdade é que está claro que Hillary Clinton foi para todos os efeitos punida por sua transparência financeira, enquanto Trump foi recompensado por sua prática de nada revelar sobre as maneiras pelas quais ganha dinheiro.

E, como resultado, podemos esperar que uma falta radical de transparência seja o procedimento operacional padrão do novo governo. De fato, isso já começou a acontecer.

Tome por exemplo o processo orçamentário. Normalmente, um governo que está por assumir divulga um plano fiscal revelando suas prioridades, logo que seu mandato se inicia. Mas como aponta o especialista em orçamento Stan Collender, existem fortes indicações de que o governo Trump ignorará esse precedente (e possivelmente a lei) e simplesmente se recusará a oferecer uma explicação sobre a aritmética de suas propostas. Tudo que receberemos, provavelmente, serão garantias de que tudo será ótimo, podem acreditar.

É verdade que não sabemos ainda que um orçamento não será divulgado. Mas já está claro que a ilusão –grandes promessas, completamente vazias e desprovidas de qualquer detalhe– terá papel central na estratégia republicana quanto a uma questão crucial: o futuro da cobertura de saúde de milhões de norte-americanos.

O retrospecto: em 2010, o presidente Obama e a maioria democrata no Congresso, que pouco durou, aprovaram a Lei de Acesso a Saúde, com apoio zero da parte do Partido Republicano. Desde então, os republicanos vêm prometendo que revogarão a lei assim que puderem, substituindo-a por algo muito melhor. É estranho dizer, porém, que jamais descreveram que cara teria o seu plano substituto.

E não quero dizer que eles deixaram de revelar os detalhes de suas propostas. Passados quase sete anos da aprovação do Obamacare, os republicanos não ofereceram nem mesmo as linhas gerais de uma proposta de reforma da saúde. Por quê?

Bem, não existe um mistério real quanto a isso. Embora muitos norte-americanos digam desaprovar o Obamacare, grandes maiorias aprovam as coisas que a Lei de Acesso à Saúde oferece, especialmente a garantia de acesso a planos de saúde para pessoas que sofram de problemas médicos preexistentes. E não existe maneira de realizar esse tipo de coisa sem ou uma grande expansão dos programas de saúde governamentais –o que dificilmente pode ser considerado uma prioridade republicana– ou algo muito parecido com a lei aprovada pelos democratas.

Pior ainda, do ponto de vista republicano: o Obamacare funcionou. Não é perfeito, nem de longe, mas o número de norte-americanos desprovidos de planos de saúde caiu à marca mais baixa na história do país. E os cidadãos que passaram a dispor de cobertura de saúde por conta do Obamacare estão muito satisfeitos com os serviços de saúde recebidos.

Assim, o que os republicanos podem oferecer como alternativa? Sabemos o que os republicanos querem: um mercado livre no qual as operadoras de planos de saúde possam discriminar quem bem desejarem, com regulamentação mínima e cortes drásticos na assistência governamental. No entanto, adotar esse sistema levaria milhões de norte-americanos –muitos dos quais votaram em Trump, acreditando que seus ganhos recentes estivessem garantidos– a perder seus planos de saúde. A reação política que isso geraria seria terrível.

Mas caso o novo governo não venha a revogar o Obamacare, também poderá pagar pesados custos políticos. Assim, a estratégia emergente dos republicanos quanto à saúde, de acordo com as reportagens, é "revogar mas postergar" –votar por revogar o Obamacare mas com a data de implementação empurrada para depois da eleição legislativa de 2018. Àquela altura, prometem os líderes republicanos, eles terão desenvolvido o plano substituto que não conseguiram apresentar nos últimos sete anos.

A verdade é que não haverá substituto. E é provável que surja o caos nos mercados de planos de saúde muito antes da data de revogação prevista para o Obamacare, porque as operadoras de planos abandonarão os mercados que elas sabem entrarão em colapso no futuro próximo. Mas o raciocínio político parece ser de que será possível encontrar uma maneira de culpar os democratas pela derrocada.

Tudo isso tem bem a cara de Trump, se pensarmos a respeito. Um título honesto para um livro de memórias sobre a carreira do presidente eleito seria "A Arte da Trapaça". Afinal, o traço característico de seus negócios é extrair lucros de projetos empresariais fracassados, porque ele encontra maneiras de fazer com que terceiros arquem com o prejuízo.

Nesse caso, o esforço de substituir o Obamacare claramente será um terrível fracasso, em termos de atender ao público norte-americano, talvez especialmente os brancos de classe trabalhadora que votaram em Trump. Mas pode se provar um sucesso caso seja possível convencer o público de que outras pessoas são as culpadas.

Seria de imaginar que isso não é possível, dada a obviedade da trama. Mas se tomarmos por base aquilo que vimos até agora, é preciso levar a sério a possibilidade de que eles consigam fazê-lo e escapar ilesos.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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