Folha de S. Paulo


Trump dá lição sobre o que são verdadeiros conflitos de interesses

Lembra-se de todas aquelas reportagens que sugeriam, sem qualquer prova, que a maneira pela qual a Fundação Clinton arrecadava fundos representava conflito de interesses? Bem, agora o homem que se beneficiou de todas aquelas insinuações está a caminho da Casa Branca.

E já está nos oferecendo uma lição prática sobre o que são verdadeiros conflitos de interesses, com governos autoritários de todo o planeta cumulando de benefícios o seu império de negócios.

É claro que Donald Trump poderia rejeitar esses benefícios e se separar, e à sua família, do comando de seus hotéis e tudo mais. Mas não é o que ele está fazendo. Na verdade, está usando sua posição abertamente a fim de atrair negócios. E os primeiros nomes anunciados para sua equipe sugerem que ele não será o único figurão usando o poder político a fim de ampliar sua riqueza pessoal.

Agir em nome do autointeresse será a normal ao longo de seu governo. Os Estados Unidos acabam de ingressar em uma era de corrupção sem precedentes no topo de seu governo.

A pergunta que é necessário fazer é por que isso importa. Uma dica: não é o dinheiro, mas os incentivos.

É verdade que poderíamos também falar sobre o dinheiro, muito dinheiro —pense em bilhões, não apenas milhões, apenas para a Trump (o que explica por que sua promessa de não aceitar salário como presidente não passa de uma piada sórdida).

Mas os Estados Unidos são um país muito rico, cujo governo gasta mais de US$ 4 trilhões ao ano, e por isso até mesmo depredações em larga escala parecem não passar de um errinho de contabilidade. O que é importante não é o dinheiro que ficará em poder dos membros do círculo íntimo do poder, mas o que eles farão para receber esse dinheiro, e as más políticas públicas que resultarão disso.

Normalmente, uma política pública reflete alguma combinação entre praticidade —o que funciona?— e ideologia —o que se enquadra aos meus preconceitos? E nossa queixa usual é a de que a ideologia muitas vezes se sobrepõe aos fatos.

Mas agora veremos um terceiro fator em ação, e com muita força: que políticas públicas propiciariam as maiores oportunidades de ganho às autoridades, entre as quais o homem no topo? O efeito disso será desastroso.

Vamos começar relativamente pequeno, com a indicação de Betsy DeVos para o Departamento da Educação. DeVos tem afinidades evidentes com Trump: o marido dela herdou a fortuna criada pela Amway, empresa que já foi acusada de ser um esquema fraudulento e, em 2011, encerrou extrajudicialmente um processo judicial coletivo, pagando US$ 150 milhões aos queixosos.

Mas o que realmente chama a atenção é a proposta política que ela mais defende, a de vales-ensino, sob a qual os pais receberiam dinheiro para custear a educação de seus filhos como preferissem, em lugar de esse dinheiro ser destinado às escolas públicas.

A esta altura, existem provas suficientes quanto ao funcionamento concreto de sistemas de vale-ensino, e essas provas são basicamente negativas. Por exemplo, o extenso sistema de vales-ensino criado na Lousiana resultou claramente em insucesso educacional mais alto para os alunos.

Mas os defensores do vale-ensino não aceitam não como resposta. Parte da questão é ideológica, mas também é verdade que o dinheiro representado pelos vales-ensino terminaria por chegar aos cofres do setor privado de educação.

E o histórico das escolas pagas é verdadeiramente horrível; o governo Obama vem agindo para reprimir as muitas trapaças que caracterizam o setor. Mas agora as coisas serão diferentes. As ações de empresas de ensino privado dispararam depois da eleição. Duas, três, muitas Universidades Trump!

Seguindo em frente, já escrevi sobre o plano Trump de infraestrutura, que, sem motivos óbvios envolve a privatização ampla de ativos públicos. Sem motivos óbvios, claro, se excluirmos as imensas oportunidades de compadrio e exploração que surgiriam.

Mas o que verdadeiramente assusta é o potencial impacto da corrupção sobre a política externa. Volto a afirmar: governos estrangeiros já estão tentando comprar influência ao ampliar a riqueza pessoal de Trump, e ele está acolhendo favoravelmente esses esforços.

Caso você esteja questionando, sim isso é de fato inconstitucional, violando claramente a chamada cláusula dos emolumentos. Mas quem é que defenderá a aplicação da constituição? Os republicanos do Congresso? Não seja tonto.

Pondo de lado a destruição das normas democráticas, pense na distorção que esses pagamentos, para todos os efeitos subornos, criariam na política dos Estados Unidos. Que tipo de regime tentaria comprar influência enriquecendo o presidente e seus amigos? A resposta é, só um governo que não viva sob o domínio da lei.

Pense nisso. O Reino Unido ou o Canadá poderiam comprar influência junto ao novo governo aliviando a regulamentação de um novo clube Trump de golfe ou encaminhando negócios aos hotéis dele? Não —nesses países há liberdade de imprensa, Judiciário independente e regras para impedir comportamento desse tipo. Por outro lado, um país como a Rússia de Vladimir Putin pode facilmente canalizar vastas somas para o sujeito no topo, em troca, digamos, da retirada das garantias de segurança aos países bálticos.

A esperança seria que as autoridades de segurança nacional estejam explicando a Trump como seria destrutivo permitir que considerações de negócios conduzam a política externa. Mas as reportagens dão conta de que Trump mal conversou com esse pessoal, e se recusou a receber os briefings usualmente feitos a um presidente eleito.

Assim, até que ponto a corrupção da era Trump será destrutiva? Meu melhor palpite é que ela será muito pior do que você é capaz de imaginar.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página:

Links no texto: