Folha de S. Paulo


Como a eleição americana foi manipulada

Fotomontagem/Reuters
Candidata democrata Hillary Clinton e republicano Donald Trump
Candidata democrata Hillary Clinton e republicano Donald Trump

Está quase no fim. Poderemos respirar aliviados ou teremos de uivar de medo? Ninguém sabe ao certo, ainda que as indicações iniciais claramente sejam favoráveis a Hillary Clinton. O que quer que venha a acontecer, no entanto, convém que sejamos claros: essa eleição foi, de fato, uma eleição manipulada.

A eleição foi manipulada pelos governos estaduais que fizeram tudo que podiam para impedir que os norte-americanos não brancos votassem. O espírito da segregação racial continua muito vivo —e não só ao modo tradicional, quanto aos negros, porque agora os latinos se uniram a eles como alvos.

As leis que requerem que os eleitores apresentem documentos de identidade, justificadas por preocupações demonstravelmente falsas sobre fraude eleitoral, foram usadas para privar milhares de pessoas de seu direito de voto. Outras foram desencorajadas por esforços sistemáticos para dificultar a votação, fechando as seções eleitorais que costumavam existir em áreas com grandes populações minoritárias.

A eleição foi manipulada pelos serviços de inteligência russos, que quase certamente estão por trás dos ataques de hackers aos arquivos de e-mails do Partido Democrata, que o WikiLeaks em seguida divulgou com grande alarde. Nada de verdadeiramente escandaloso emergiu, mas os russos julgaram, corretamente, que a mídia noticiosa dos Estados Unidos trataria com exagero, e como algo suspeito, a revelação de que figuras importantes em partidos políticos são seres humanos, e de que políticos fazem política.

A eleição foi manipulada por James Comey, o diretor do FBI (Polícia Federal americana). O trabalho dele é policiar crimes —mas, em lugar disso, Comey usou seu posto para difundir insinuações e influenciar a eleição. Ele estava tentando deliberadamente adulterar a balança eleitoral ou foi simplesmente intimidado por operadores ligados ao Partido Republicano? Não importa: abusou vergonhosamente dos poderes de seu cargo.

A eleição também foi manipulada por outras pessoas do FBI —pessoas que claramente sentiam que, sob o comando de Comey, tinham liberdade para trabalhar em favor de suas preferências políticas.

Nos dias finais da campanha, agentes do FBI favoráveis a Trump vêm claramente falando sem parar com figuras como Rudy Giuliani e com a mídia de direita, divulgando acusações e informações que podem ou não ter qualquer relação com a realidade. A agência claramente precisa de uma reforma completa. Que uma parte importante do nosso aparelho de segurança nacional esteja tentando subverter uma eleição é algo de profundamente assustador.

Infelizmente, Comey é o homem perfeito para não realizar essa tarefa.

A eleição foi manipulada pela mídia partidária, especialmente a Fox News, que trombeteou inverdades e depois se retratou por isso, quando o fez, de forma tão silenciosa que ninguém ouviu. A Fox News passou dias repetindo a suposta notícia de que o FBI estava preparando um indiciamento da Fundação Clinton. Quando por fim admitiu que a história era falsa, o diretor de campanha de Trump declarou, presunçosamente que, tudo bem, o estrago à campanha de Hillary "já havia sido feito".

A eleição foi manipulada pelas grandes organizações de mídia noticiosa, muitas das quais simplesmente se recusaram a reportar sobre questões substantivas, uma recusa que claramente favorecia o candidato que mente sobre essas questões o tempo todo e não tem qualquer proposta coerente a oferecer.

Tome como exemplo os telejornais noturnas das grandes redes de TV: em 2016, as três grandes redes dedicaram um total de 32 minutos à cobertura das questões substantivas —todas elas somadas. A mudança do clima, a questão mais importante entre as que enfrentamos, recebeu zero cobertura.

A eleição foi manipulada pela obsessão da mídia quanto aos e-mails de Hillary Clinton. Ela não deveria ter usado um servidor pessoal, mas não existe qualquer indicação de que tenha feito qualquer coisa de antiético, quanto mais de ilegal.

A coisa toda é muitíssimo menos importante do que os múltiplos escândalos quanto ao seu oponente: lembre-se de que Donald Trump jamais divulgou suas declarações de renda. Mas as mesmas redes que dedicaram 32 minutos a todas as questões substantivas reservaram 100 minutos de seus noticiários para falar dos e-mails de Hillary. É um histórico desprezível. E ainda assim parece provável que Hillary vença.

Se o fizer, você sabe o que acontecerá. Os republicanos, é claro, negarão sua legitimidade desde o primeiro dia, como fizeram com os dois últimos presidentes democratas.

Mas haverá também —pode contar com isso— muitos muxoxos e muita depreciação da parte dos sabichões profissionais e de muita gente na mídia, muita negação de que ela tenha um "mandato" (o que quer que isso signifique), já que outro candidato republicano teria supostamente sido capaz de derrotá-la, ou sua margem de vitória deveria ter sido maior, ou qualquer coisa.

Por isso, nos próximos dias será importante recordar duas coisas. Primeiro, Hillary na verdade conduziu uma campanha notável, demonstrando sua tenacidade diante do tratamento injusto a que foi submetida e se mantendo calma apesar de pressões que teriam derrubado a maioria de nós.

Segundo, e muito mais importante, se ela vencer isso se deverá aos norte-americanos que decidiram defender os princípios de nosso país - que esperaram por horas em filas eleitorais criadas para desencorajá-los, que prestaram atenção ao que está verdadeiramente em jogo na eleição em lugar de se deixaram distrair por falsos escândalos e pelo ruído da mídia.

Essas cidadãos merecem ser homenageados, e não denegridos, por fazerem o melhor que podem a fim de salvar o país dos efeitos de instituições seriamente defeituosas. Muita gente se comportou de maneira vergonhosa este ano - mas dezenas de milhões de eleitores mantiveram sua fé nos valores que verdadeiramente tornam grandes os Estados Unidos.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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