Folha de S. Paulo


Receio de crítica explica por que mídia se deixa enganar por falsos escândalos

Andrew Harnik-28.out.2016/Associated Press
Escândalo de e-mails envolvendo Hillary indica desejo da midia de evitar as críticas da direita
Escândalo de e-mails envolvendo Hillary indica desejo da midia de evitar as críticas da direita

A enigmática carta que James Comey, o diretor do FBI (Polícia Federal americana), enviou ao Congresso na sexta-feira (28), pareceu bizarra desde o momento em que foi divulgada —ela aparentemente apontava para um novo grande escândalo envolvendo os Clinton, mas sem oferecer qualquer informação substancial.

Mas sabendo o que agora sabemos, foi bem pior que bizarro: o incidente foi imperdoável. Comey aparentemente não tinha provas indicando qualquer delito da parte de Hillary Clinton; ele violou regras muito antigas quanto a comentar sobre investigações politicamente delicadas perto de uma eleição; e o fez apesar de ter sido advertido por outros funcionários do governo de que sua atitude seria um terrível erro.

O que aconteceu, então? Talvez jamais venhamos a conhecer a história completa, mas o melhor palpite é que Comey, como muitos outros —organizações de mídia, grupos de pressão supostamente apolíticos e mais - se deixou intimidar pelos suspeitos habituais.

Pressionar a arbitragem —gritar quanto a parcialidade e tratamento injusto, por melhor que seja o tratamento de fato recebido— vem sendo uma estratégia política consistente há muito tempo, para a direita. E o motivo para que ela continue em uso é que tenha funcionado, em tantos casos.

As indicações mais claras disso vêm da cobertura noticiosa. Os repórteres que se veem confinados em áreas restritas nos comícios de Donald Trump, enquanto ouvem insultos gritados pela plateia contra eles, não deveriam se surpreender: acusações de que a imprensa é parcial em favor dos liberais são tática padrão dos republicanos há décadas. E por que não seriam? Esse tipo de pressão sempre se provou efetivo.

Parte da efetividade vem de falsas equivalências: as organizações noticiosas, que temem ser atacadas por suposta parcialidade, tratam mentiras e verdades como se fossem equivalentes. Em 2000, sugeri que se um candidato republicano declarasse que a Terra era chata, as manchetes diriam: "Visões divergentes sobre a forma do planeta". Isso continua a acontecer.

O desejo de evitar as críticas da direita também pode ajudar a explicar por que a mídia noticiosa continua a se deixar enganar por falsos escândalos. Há uma conexão direta entre a investigação do caso Whitewater —que durou sete anos, foi alardeada interminavelmente pela imprensa mas jamais constatou qualquer delito da parte dos Clinton— e a cobertura catastroficamente ruim conferida à Fundação Clinton dois meses atrás.

Lembram-se de quando a Associated Press sugeriu um escândalo de influência indevida com base em um encontro entre Hillary Clinton e um doador laureado com o Prêmio Nobel e amigo pessoal da candidata?

E portanto boa parte da cobertura inicial da carta de Comey se baseava não naquilo que a carta de fato dizia —ou seja, muito pouco— mas na malévola caracterização dela por Jason Chaffetz, o republicano que preside o Comitê de Fiscalização e Reforma Governamental da Câmara. Seria de imaginar que a esta altura os repórteres já tivessem aprendido a não aceitar o que pessoas como Chaffetz dizem pelo valor de face. Não, aparentemente não aprenderam.

E a questão não se limita à mídia noticiosa. Alguns anos atrás, no pico da influência da corrente de opinião que se opunha fortemente a aumentar o deficit público, era chocante perceber que diversas organizações que exigiam uma redução do deficit se dispunham a fingir que a culpa cabia igualmente aos democratas, dispostos a aceitar compromissos, e aos republicanos, sempre determinados a cortar os impostos dos ricos. Essas organizações chegaram a conferir um prêmio por "responsabilidade fiscal" a Paul Ryan, cujas propostas orçamentárias dão novo significado à expressão "cortina de fumaça".

Em minha condição de alguém que mantém pelo menos um pé no mundo acadêmico, tenho acompanhado a crescente pressão sobre as universidades para que contratem mais conservadores. Pouca importam a negação da mudança no clima, os ataques à teoria da evolução e tudo que pode ter contribuído para afastar os acadêmicos do Partido Republicano.

O fato de que há poucos conservadores lecionando, digamos, física é considerado prova de uma gritante injustiça. E você sabe que algumas escolas começarão a contratar pessoas menos qualificadas, em resposta a esse tipo de pressão.

O que nos conduz de volta a Comey. Parecia evidente desde o começo que a decisão de Hillary de seguir o conselho de Colin Powell e não utilizar o serviço de e-mail do Departamento de Estado foi um erro, mas nada que de maneira alguma possa ser caracterizado como crime.

No entanto, Comey se viu sujeito a uma barragem constante de demandas de que ele abrisse processo contra a candidata democrata por... qualquer coisa. Ele poderia simplesmente ter dito que não. Em lugar disso, ao anunciar, em julho, que não seriam apresentadas acusações com relação ao caso, ele criticou a conduta de Hillary —uma atitude completamente inapropriada, provavelmente resultante de um esforço de apaziguar a direita.

Não funcionou, claro. Eles simplesmente passaram a exigir mais. E ao que parece Comey tentou comprar tranquilidade lhes jogando um osso alguns dias antes da eleição. Determinar se isso terá importância, politicamente, é algo que só poderá ser feito depois do pleito, mas uma coisa é certa: ele destruiu sua reputação.

A moral da história é que apaziguar a moderna direita dos Estados Unidos é um jogo no qual não se pode ganhar. Nada que você faça os convence de que está sendo justo, porque a justiça nada tem a ver com o assunto. A direita há muito tempo esgotou quaisquer boas ideias que pudessem ser divulgadas com base em seus méritos, e o objetivo agora é tirar o mérito da equação.

Ou, para expressar a situação de outra maneira, eles estão tentando criar parcialidade, e não acabar com ela, e a fraqueza —fraqueza como a exibida tão espetacularmente por Comey— só os encoraja a repetir suas ações.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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