Folha de S. Paulo


Eleições americanas colocam em debate valores familiares progressistas

Fotomontagem
Montagem com os candidatos Donald Trump (republicano) e Hillary Clinton (democrata)
Montagem com os candidatos Donald Trump (republicano) e Hillary Clinton (democrata)

Eis o que acontece em todo ciclo eleitoral: os sabichões exigem que os políticos ofereçam ideias novas ao país. Então, se e quando um candidato de fato propõe políticas inovadoras, a mídia noticiosa não lhes dedica muita atenção, optando em lugar disso por correr atrás de escândalos ou, com muita frequência, falsos escândalos.

Você se lembra da extensa cobertura noticiosa sobre a ambiciosa agenda de saúde mental divulgada por Hillary Clinton? Nem eu.

A verdade é que até mesmo a demanda por ideias novas é altamente questionável, porque existem muitas boas e velhas ideias que não foram colocadas em práticas. A maior parte dos países avançados já implementou alguma forma de cobertura universal de saúde garantida décadas ou mesmo gerações atrás.

Será que isso significa que devemos descartar a reforma da saúde de Obama como desimportante, simplesmente porque ele colocou em prática ideias velhas e repetidas? Os 20 milhões de americanos que ganharam cobertura de saúde por causa da reforma certamente discordariam.

Ainda assim, existem algumas ideias novas e interessantes vindas de uma das campanhas, e elas poderiam nos dizer muito sobre a maneira pela qual Hillary governaria o país.

Espere lá —e quanto ao outro lado? Os republicanos não estão oferecendo novas ideias, igualmente? Bem, acho que propor a detenção e deportação de 11 milhões de pessoas conta como ideia nova. E os republicanos no Congresso parecem ter ido além de sua tradição de propor cortes de impostos e direcionar a maior parte dos benefícios da medida aos ricos.

Agora, em lugar disso, eles estão propondo cortes de impostos que propiciam todos os seus benefícios ao 1% mais rico —na verdade apenas 99,6% dos benefícios, mas quem se importa?

De volta a Hillary. Boa parte de sua agenda de propostas políticas poderia ser caracterizada como um terceiro mandato de Obama, reforçando as políticas de centro-esquerda dos últimos oito anos. Isso já seria um bom avanço. Por exemplo, estimativas independentes sugerem que as melhoras que ela propõe na Lei de Acesso à Saúde estenderiam a cobertura de saúde a 10 milhões de pessoas mais, enquanto a revogação da reforma que Donald Trump propõe faria com que 20 milhões de pessoas perdessem sua cobertura.

Além de defender e estender as realizações do presidente Barack Obama, no entanto, Hillary vem argumentando em um favor de uma agenda distintiva centrada em torno do apoio aos pais trabalhadores. Não se trata de uma ideia completamente nova, mas a escala das propostas que ela apresenta é muito maior do que qualquer coisa que já tenha sido feita no passado quanto a isso. E, como eu disse, elas nos revelam alguma coisa sobre as prioridades da candidata.

Um aspecto de sua agenda envolve 12 semanas de licença-família remunerada para cuidar de filhos recém-nascidos, ajudar parentes doentes ou se recuperar de doenças ou lesões. Oh, e caso você esteja imaginando, Trump ofereceu uma versão precária de um plano para licença-maternidade, mas mentiu descaradamente ao afirmar que sua oponente não tinha plano parecido. Isso o surpreende?

Outra proposta, ainda mais notável, envolve ajudar as famílias com filhos pequenos de diversas maneiras, especialmente por meio de verbas públicas universais para pré-escolas —subsídios e incentivos fiscais—, a fim de ajudar a reduzir os gastos com a criação de filhos (a campanha de Hillary tem como meta que eles não superem os 10% da renda familiar.)

E tudo que sabemos, tanto sobre os interesses de Hillary em longo prazo quanto tendo em mente sua atual escolha de assessores, sugere que questões centradas na família a interessam muito. Fiquei impressionado com a escolha de Heather Boushey, uma das mais importantes especialistas em questões sobre o equilíbrio entre a vida profissional e a pessoal, como economista-chefe na equipe de transição de Hillary. Isso me revela muito sobre as prioridades da candidata.

Mas por que ajudar os pais e mães trabalhadores deveria ser tamanha prioridade? Parece-me que isso seria uma tentativa de concentrar as atenções nos problemas reais do país —não a "verdadeira América" rural e branca sobre a qual os direitistas gostam de fantasiar, mas a verdadeira verdadeira América em que a maioria de nossos concidadãos vive.

E essa América é um país no qual pais e mães trabalhadores são a norma, no qual mães que ficam em casa cuidando dos filhos são clara minoria, e no qual o problema de como tomar conta das crianças e ainda assim manter as contas em dia é um problema central na vida de muita gente.

Os números impressionam: 64% das mulheres com filhos de idade inferior a seis anos fazem parte da força de trabalho remunerada, ante 39% em 1975. A maioria dessas mães trabalhadoras certamente trabalha por necessidade econômica, e como sociedade precisamos encontrar uma maneira de reconciliar essa realidade com necessidade de criar bem os nossos filhos.

Suponho que um defensor purista do livre mercado poderia questionar por que precisamos de políticas governamentais que nos ajudem a lidar com essa nova realidade. Mas estamos, afinal, falando do destino das crianças, que em alguma medida é uma responsabilidade comum.

Além disso, o aspecto econômico da criação de filhos tem algo em comum com o aspecto econômico da saúde: por diversas razões, a maioria das quais relacionada ao fato de que estamos lidando com pessoas e não coisas, não podemos esperar que mercados não regulamentados produzam resultados decentes.

Assim, quem quer que reclame que não existem ideias novas e ambiciosas circulando na atual campanha simplesmente não está prestando atenção. Um dos candidatos ao menos tem ideias que poderiam fazer diferença grande e positiva para milhões de famílias norte-americanas.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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