Folha de S. Paulo


Existe motivo para preocupação com conexão entre Trump e regime Putin

Mikhail Klimentyev/Associated Press
Elogios de Donald Trump a Vladimir Putin causaram confusão em parte da direita americana
Elogios de Donald Trump a Vladimir Putin causaram confusão em parte da direita americana

Primeiro, vamos deixar uma coisa bem clara: a Federação Russa de 2016 não é a União Soviética de 1986. É verdade que ela cobre a maior parte do mesmo território e é comandada por alguns dos mesmos brutamontes. Mas a ideologia marxista se foi, bem como o status de superpotência. Estamos falando aqui de um petro-Estado corrupto e mais ou menos ordinário, ainda que se trate de um Estado grande e dotado de armas nucleares.

Menciono tudo isso por causa dos efusivos elogios de Donald Trump a Vladimir Putin —que na verdade refletem sentimentos bem comuns da parte da direita— e da aparente confusão que eles causaram a algumas pessoas.

De um lado, há quem expresse incompreensão diante do espetáculo apresentado por direitistas —aqueles mesmos caras que costumavam bradar "América, ame-a ou deixe-a!"— ao elogiar um regime russo. Do outro lado, algumas poucas pessoas na esquerda são anti o movimento anti-Putin, e denunciam as críticas ao apreço de Trump por Putin como "caça aos comunistas".

Mas a Rússia atual não é comunista, e nem mesmo de esquerda: é só um país autoritário, que cultua a personalidade de seu homem forte e despeja benefícios sobre uma oligarquia imensamente rica, enquanto reprime brutalmente a oposição e a crítica.

E é exatamente isso, claro, que muita gente na direita admira.

Estou sendo injusto? Será que os elogios ao homem que para todos os fins práticos é o ditador da Rússia não refletem a admiração pelas suas realizações substantivas? Bem, falemos sobre o que o regime de Putin de fato realizou, começando pela Economia.

Putin chegou ao poder no final de 1999, quando a Rússia estava se recuperando de uma severa crise financeira, e seus primeiros oito anos no poder foram caracterizados por rápido crescimento econômico. No entanto, esse crescimento pode ser explicado com uma palavra só: petróleo.

Pois a Rússia, como eu disse, é um petro-Estado. Combustíveis respondem por mais de dois terços de suas exportações, e produtos industrializados por nem mesmo 20%. E os preços do petróleo mais que triplicaram do começo de 1999 a 2000; poucos anos depois, voltaram a triplicar. Em seguida, despencaram, e o mesmo aconteceu com a economia russa, que vem se saindo muito mal nos últimos anos.

Putin poderia ter algo de que se vangloriar se tivesse conseguido diversificar as exportações russas. E isso deveria ter sido possível: o velho regime deixou ao país um grande quadro de trabalhadores altamente capacitados.

Na verdade, emigrantes russos foram uma força importante por trás do notável boom tecnológico de Israel —e o governo Putin não parece ter problemas para recrutar hackers talentosos para ler arquivos confidenciais do Comitê Nacional do Partido Democrata norte-americano. Mas a Rússia não realizará seu potencial tecnológico sob um regime no qual o sucesso nos negócios depende primordialmente de conexões políticas.

Assim, a gestão da economia por Putin não merece elogios especiais. E quanto a outros aspectos de sua liderança?

A Rússia tem, é claro, grandes forças armadas, que usou para anexar a Crimeia e apoiar os rebeldes do leste da Ucrânia. Mas esse abuso da força torna a Rússia mais fraca, e não mais forte. A Crimeia, especialmente, não representa uma grande conquista. Seu território abriga menos população do que os distritos nova-iorquinos de Queens ou Brooklyn, e em termos econômicos ela é mais passivo do que ativo, porque a tomada do território pelos russos solapou o turismo, a atividade econômica básica da região até lá.

Uma observação: estranhamente, algumas pessoas acreditam que exista contradição entre a zombaria democrata quanto ao romance másculo entre Trump e Putin e a zombaria do presidente Barack Obama contra seu oponente Mitt Romney, na campanha presidencial de 2012, por este ter definido a Rússia como "nosso inimigo geopolítico número 1". Mas não há contradição alguma: a Rússia tem um regime horrível mas, como disse Obama, é "uma potência regional", e não uma superpotência como a antiga União Soviética.

Por fim, e quanto ao poder brando, a capacidade de persuadir por meio dos atrativos e valores de uma cultura? A Rússia não conta com muito desse poder —a não ser, talvez, entre os direitistas que acham a pose de macho e a crueldade de Putin atraentes.

O que nos conduz de volta à importância do culto a Putin, e à maneira pela qual esse culto atraiu a adesão irrestrita do candidato republicano à presidência.

Existem bons motivos para que nos preocupemos sobre as conexões pessoais entre Trump e o regime de Putin (ou oligarcas próximos ao regime, o que na prática é a mesma coisa). Que importância teve o dinheiro russo na manutenção do precário império empresarial de Trump? Existem indicações de que isso pode ter sido muito importante, mas dado o apego de Trump ao segredo e à sua recusa em divulgar suas declarações de impostos, ninguém tem como saber.

Para além disso, porém, admirar Putin significa admirar alguém que despreza a democracia e as liberdades civis. Ou, mais precisamente, significa admirar alguém por causa desse desprezo.

Quando Trump e outros elogiam Putin como "líder forte", não querem dizer que ele restaurou a grandeza da Rússia, porque não o fez. Ele pouco realizou na frente econômica, e suas conquistas, e não são muitas, parecem patéticas. O que ele fez, porém, foi esmagar seus rivais internos. Quem se opõe ao regime de Putin provavelmente terminará encarcerado ou morto. Forte!

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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