Folha de S. Paulo


Hillary Clinton pode se tornar o novo Al Gore

Chris Keane/Reuters
Hillary Clinton pode se tornar o novo Al Gore
Hillary Clinton pode se tornar o novo Al Gore

Os norte-americanos de certa idade que acompanham política e questões públicas de perto ainda têm lembranças vívidas da eleição de 2000 —más lembranças, e não só porque o homem que foi derrotado no voto popular de alguma maneira terminou presidente. Pois a campanha que conduziu àquele resultado final também foi um pesadelo.

O fato é que um dos candidatos, George W. Bush, foi desonesto de uma maneira que não tinha precedentes na política dos Estados Unidos. O mais notável é que ele propôs grandes cortes de impostos para os ricos enquanto insistia, em uma negação frontal das leis da aritmética, que os cortes se destinavam à classe média.

Essas mentiras de campanha pressagiaram aquilo que aconteceria durante seu governo - um governo que, cabe não esquecer, levou os Estados Unidos a uma guerra sob falsos pretextos.

Mas, ao longo de toda a campanha, a cobertura da mídia em geral dava a impressão de que Bush era um cara franco e direto, e retratava seu oponente Al Gore —cujas propostas de campanha batiam em termos numéricos e cujas críticas ao plano de Bush eram completamente acuradas— como um sujeito escorregadio e desonesto.

A mendacidade de Gore era supostamente comprovada por uma série de histórias triviais, nenhuma das quais significativa e algumas das quais simplesmente falsas. Não, Gore jamais afirmou ter inventado a Internet. Mas essa imagem ficou.

E no momento eu e muitas outras pessoas começamos a sentir, com tristeza e desânimo, que a mesma coisa está acontecendo.

É verdade que não existem muitos esforços para fingir que Donald Trump seja um paradigma de honestidade. Mas é difícil escapar à impressão de que ele está sendo avaliado com benevolência. Se Trump consegue ler um discurso no ponto eletrônico sem se afastar do texto, seu desempenho é tratado como presidencial.

Se ele parece sugerir que não decretaria a prisão imediata de todos os 11 milhões de imigrantes ilegais, ele está se aproximando do centro. E muitos de seus múltiplos escândalos, por exemplo aquilo que parecem ser claros pagamentos a secretários estaduais de Justiça para que estes suspendam as investigações sobre a Trump University, não recebem a atenção merecida.

Enquanto isso, vivemos com a suposição de que qualquer coisa que Hillary Clinton faça deve ser corrupta, o que é ilustrado de maneira espetacular pela cobertura cada vez mais bizarra sobre a Fundação Clinton.

Recuemos por um momento e vamos considerar qual é o objetivo da fundação. Quando Bill Clinton encerrou seu mandato presidencial, ele era uma figura popular, respeitada em todo o mundo. O que ele deveria ter feito com essa reputação? Arrecadar grandes quantias para uma organização assistencial que salva as vidas de crianças pobres parece um curso bastante razoável, e virtuoso.

E a Fundação Clinton, todos concordam, é uma grande força para o bem, em todo o mundo. Por exemplo, a Charity Watch, uma organização independente de avaliação de entidades assistenciais, confere à fundação a classificação A —uma nota superior à que confere à Cruz Vermelha dos Estados Unidos.

É fato que qualquer organização que arrecade e gaste bilhões de dólares cria o potencial de conflitos de interesse. Seria possível imaginar os Clinton usando as verbas da fundação como fundo para beneficiar os amigos, ou pode-se imaginar que Hillary usaria sua posição no governo como veículo para recompensar doadores.

Assim, é certo e apropriado investigar as operações da fundação a fim de determinar se houve casos indevidos de troca de favores. Como os repórteres gostam de dizer, o tamanho mesmo da fundação "desperta questões".

Mas ninguém parece disposto a aceitar as respostas a essas questões, que são, claramente, "não".

Considere a grande reportagem da Associated Press sugerindo que os encontros de Hillary, enquanto ela era secretária de Estado, com doadores de verbas à fundação indicam "um possível desafio ético" caso ela seja eleita presidente. Dado o tom da reportagem, o que se imagina são reuniões com, digamos, ditadores estrangeiros brutais ou figurões empresariais sujeitos a investigações criminais, seguidas por ações questionáveis em benefício dessas pessoas.

Mas o exemplo principal que a Associated Press revelou foi uma reunião entre Hillary e Muhammad Yunus, laureado com o Prêmio Nobel da Paz e amigo pessoal da candidata há muito tempo. Se isso foi o melhor que a investigação conseguiu revelar, bem, nada havia a revelar.

Por isso, insto os jornalistas a questionar se estão reportando fatos ou simplesmente fazendo insinuações, e insto o público a lê-las de maneira crítica. Se reportagens sobre um candidato afirmam que algo "desperta questões", "cria sombras" ou algo parecido, esteja ciente de que essas expressões são em muitos casos uma maneira de criar a impressão de irregularidades com base em coisa nenhuma.

E eis uma dica profissional: uma das melhores maneiras de julgar o caráter de um candidato é observar o que ele efetivamente faz, que políticas está propondo. O histórico de Trump quanto a explorar estudantes, deixar prestadores de serviços sem pagamento e mais é um bom indicador de como ele agiria caso se torne presidente.

O modo de falar e linguagem corporal de Hillary Clinton não o são. As mentiras de George W. Bush quanto às suas propostas políticas me informaram melhor sobre o que ele era do que todas as reportagens de tom mais pessoal que acompanharam a campanha de 2000, e o contraste entre a incoerência das propostas políticas de Trump e o cuidado demonstrado por Hillary Clinton tem muito a dizer sobre a campanha atual.

Em outras palavras, fique atento aos fatos. Os Estados Unidos e o mundo não podem arcar com o custo de mais uma eleição decidida por insinuações.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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