Folha de S. Paulo


Os dois lados?

Quando Donald Trump começou sua campanha presidencial, muita gente tratou o assunto como piada. Nada do que ele fez ou disse desde então serviu para melhorar essa impressão. Pelo contrário: sua ignorância quanto a políticas públicas se tornou ainda mais gritante, suas posições mais extremas, os defeitos de seu caráter mais evidentes, e ele demonstrou repetidamente um nível de desprezo pela verdade que não tem precedentes na política dos Estados Unidos.

No entanto, embora a maioria das pesquisas sugira que ele está em desvantagem na eleição geral, a margem dessa desvantagem não é esmagadora, e existe uma chance real de que vença. Como isso é possível?

Parte da resposta, proponho, é que os eleitores não apreciam plenamente o quanto ele é horrível. E o motivo para isso é que parte grande demais da mídia noticiosa não é capaz de abandonar a ideia de oferecer espaço igual às duas partes - a determinação quase patológica de retratar políticos e seus programas como igualmente bons e igualmente ruins, não importa o quanto essa postura se torne absurda.

Vou esclarecer. Não estou argumentando que a história toda se deva a uma cobertura noticiosa distorcida, ou que ninguém apoiaria Trump se a mídia estivesse fazendo seu trabalho. O virtual candidato republicano à presidência não teria avançado até onde chegou se não estivesse explorando ressentimentos profundos.

Além disso, os Estados Unidos são um país profundamente dividido, pelo menos em sua vida política, e a grande maioria dos republicanos votará no indicado por seu partido, haja o que houver. Ainda assim, o fato é que a maioria dos eleitores não tem tempo ou a inclinação de pesquisar por conta própria, e com isso recebe sua análise das notícias via televisão ou páginas noticiosas regulares, o que significa uma dieta diária de falsas equivalências.

Esse fenômeno não é novo. Na campanha de 2000, George W. Bush foi abertamente desonesto sobre suas propostas políticas; os números que ele alardeava não batiam, e ele afirmava repetidamente que seus cortes de impostos, que favoreciam descaradamente o 1%, tinham por objetivo beneficiar a classe média. Mas a cobertura noticiosa convencional jamais deixou claro esse fato. Frustrado, escrevi na época que, se um candidato à presidência afirmasse que a Terra é plana, os artigos noticiosos de análise trariam manchetes como "forma do planeta: os dois lados têm bons argumentos".

E Trump está longe de ser a única figura política atual que se beneficia da determinação de encontrar equilíbrio onde este não existe. Paul Ryan, presidente da Câmara dos Deputados, tem a reputação de ser um homem bem informado sobre as políticas públicas, e comprometido para com a responsabilidade fiscal, o que é absolutamente incompreensível se você estudar as propostas políticas desordenadas e fundamentalmente desonestas que ele divulga.

Mas o culto de tratar as duas partes igualmente requer que alguém do lado republicano seja tratado como um especialista sério e honesto em política fiscal, e com isso Ryan é escalado para o papel não importa o quanto ele seja trapaceiro na realidade.

Ainda assim, há trapaceiros e trapaceiros. Seria de pensar que Donald Trump, que mente tanto que os encarregados de averiguar suas afirmações mal conseguem acompanhá-lo, continua a repetir falsidades mesmo depois que elas são desmentidas, e que combina tudo isso a maus modos agressivos dirigidos em parte à mídia, seria um fardo pesado demais até mesmo para os proponentes da cobertura noticiosa balanceada.
Bem, quem pensa assim está errado.

É justo ressaltar que alguns repórteres e organizações noticiosas tentam destacar as afirmações falsas, assustadoras ou ambos, da parte de Trump. Mas é frequente que ainda assim tentem manter o seu tão querido balanço ao dedicar tempo igual —e, pelo menos do ponto de vista dos leitores e espectadores, paixão igual ou ainda maior— a denunciar declarações imprecisas de Hillary Clinton. De fato, pesquisas demonstram que Hillary recebeu no geral cobertura muito mais negativa que seu oponente.

E nos últimos dias vimos uma demonstração espetacular do culto ao "peso igual para os dois lados": um artigo de opinião do atual e do novo presidente da Associação dos Correspondentes da Casa Branca com a manchete "Trump, Clinton: os dois ameaçam a liberdade de imprensa". Como? Bem, Trump baniu seletivamente organizações noticiosas que considera hostis; também atacou essas organizações, e repórteres individuais, embora o artigo não mencione o fato, e se recusou a condenar partidários que, por exemplo, atacaram repórteres usando epítetos antissemitas.

Enquanto isso, embora Hillary não tenha feito nada disso e tenha uma equipe que responde prontamente a perguntas quanto aos dados e propostas que ela divulga, é criticada por não gostar de conceder entrevistas coletivas. Equivalência!

Incomodados com as críticas recebidas, os autores do artigo divulgaram um comunicado negando a prática de "falsa equivalência" —acho que afirmar que os candidatos estão agindo "similarmente" não quer dizer que eles estejam agindo similarmente. E uma vez mais se recusaram a indicar que candidato estava agindo pior.

Como eu disse, o princípio de dar igual destaque aos dois lados não é novidade, e sempre representou uma evasão de responsabilidade. Mas adotar a posição de que "os dois lados agem igual" agora, diante desta campanha e deste candidato, é um ato de estrondosa irresponsabilidade.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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