Folha de S. Paulo


Um conto de dois partidos

Você se lembra do que aconteceu quando caiu o Muro de Berlim? Até aquele momento, ninguém havia compreendido o quanto era profunda a decadência do comunismo. Ele ainda contava com tanques, armas e mísseis nucleares, mas ninguém mais acreditava em sua ideologia; os líderes e os homens duros do regime eram simples carreiristas, que entregaram as rédeas diante do primeiro choque.

Parece-me que é preciso pensar da mesma maneira sobre o que aconteceu com o Partido Republicano dos Estados Unidos no presente ciclo eleitoral.

A liderança tradicional republicana foi facilmente deposta porque já era oca em seu cerne. Os insultos de Donald Trump quanto a Jeb "baixa energia" Bush e "pequeno Marco" Rubio funcionaram porque continham dose considerável de verdade. Quando Bush e Rubio seguiram as regras e repetiram os clichês conservadores habituais, era perceptível que não existia convicção por trás de suas palavras. E bastaram os sopros e os rugidos de um exibicionista falastrão para derrubar suas casas.

Mas, como Trump vem descobrindo, a liderança democrata é diferente.

Como alguns cientistas políticos agora reconhecem, os dois grandes partidos políticos dos Estados Unidos não são de maneira alguma simétricos. O Partido Republicano é, ou era até que Trump chegasse, uma estrutura hierárquica organizada de cima para baixo a fim de impor a linha ideológica do partido, sem quaisquer adulterações. Os democratas, em contraste, são uma coalizão de grupos sociais, de sindicatos de professores à organização de planejamento familiar Planned Parenthood, que buscam benefícios específicos das ações do governo.

Essa diversidade de interesses ocasionalmente reduz a efetividade política dos democratas - a velha piada de Will Rogers, de que "não sou membro de um partido político organizado; sou democrata", continua a soar verdadeira. Mas isso também significa que a liderança democrata, não importa que forma tome, resiste melhor a golpes como o realizado por Trump.

Mas calma lá: Hillary Clinton também não teve de enfrentar uma insurgência, na pessoa de Bernie Sanders, que ela mal e mal conseguiu derrotar? Na verdade, não.

Para começar, a disputa não foi assim tão acirrada. Hillary teve margem de vitória quase quatro vezes mais alta que a de Barack Obama em 2008, em termos de delegados conquistados; e obteve vantagem de dois dígitos no voto popular.

E ela tampouco venceu por meio de gastos muito superiores aos de seu adversário. Na verdade, Sanders a superou em gastos durante toda a campanha, gastando duas vezes mais que Hillary em publicidade nas primárias de Nova York, que ela venceu com vantagem de 16 pontos percentuais.

Além disso, Hillary teve de enfrentar uma imensa e bizarra hostilidade de parte da mídia noticiosa. O Shorenstein Center, da Universidade Harvard, na semana passada divulgou um relatório sobre o tratamento aos candidatos pela mídia em 2015, mostrando que Hillary recebeu de longe a cobertura mais desfavorável.

Mesmo quando as reportagens se concentravam em questões concretas e não supostos escândalos, 84% da cobertura que ela recebeu foi negativa, porcentagem duas vezes superior à encontrada na cobertura a Trump. Como aponta o relatório, a cobertura negativa a Hillary equivale a milhões de dólares em propaganda negativa, com ela como alvo.

E mesmo assim ela venceu, e com relativa facilidade, porque tinha apoio sólido de elementos chave da coalizão democrata, especialmente os eleitores não brancos.

Mas será que essa resistência se manterá durante a eleição presidencial? As indicações iniciais são de que sim. Trump se aproximou de Hillary nas pesquisas de opinião pública por breve período, ao garantir a indicação republicana, mas está em queda desde então. E isso a despeito da recusa de Sanders de admitir sua derrota ou declarar apoio à virtual candidata, e dos eleitores de Sanders que continuam declarando, em pesquisas de opinião, que não votarão em Hillary.

Enquanto isso, Trump está golpeando a cego. Ele tentou todas as táticas que funcionaram em seu favor na disputa republicana —insultos, apelidos derrogatórios, bazófias— mas nada disso está funcionando. A opinião convencional era a de que ele seria favorecido por um ataque terrorista, mas a atrocidade em Orlando, Flórida, parece tê-lo prejudicado: a resposta de Hillary pareceu presidencial, e a dele não.

Pior ainda, do ponto de vista do virtual candidato republicano, parece estar acontecendo um esforço coordenado da parte dos democratas —Hillary mesma, a senadora Elizabeth Warren, de Massachusetts, o presidente Barack Obama, e outros— para fazer com que o grande ridicularizador pareça ridículo (o que ele é). E isso parece estar funcionando.

Por que Hillary está se sustentando tão bem diante de Trump, enquanto a liderança republicana tradicional se provou tão incapaz? Em parte isso acontece porque os Estados Unidos como um todo, ao contrário da base republicana, não são dominados por homens brancos zangados. Em parte porque, como percebeu quem quer que tenha assistido às audiências sobre o ataque a Benghazi, Hillary mesma é muito mais durona do que qualquer pessoa do outro lado.

Mas um fator muito importante, eu arriscaria argumentar, é que a elite democrata é em geral bastante robusta. Não estou afirmando que seus integrantes sejam anjos, o que claramente não são. Alguns, sem dúvida, são corruptos, no plano pessoal. Mas os diversos grupos que formam a coalizão do partido realmente acreditam em suas posições e se importam com elas; eles não estão simplesmente dizendo aquilo que os irmãos Koch lhes pagarem para dizer.

Assim, não preste atenção a qualquer pessoa que afirme que as ascensão de Trump reflete os poderes mágicos do candidato ou alguma ampla descarga bipartidária de raiva contra as elites. O que funcionou nas primárias não funcionará na eleição geral, porque a elite de apenas um partido já estava morta por dentro quando o processo começou.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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