Folha de S. Paulo


Cidades para todos

Você se lembra de quando Ted Cruz tentou derrubar Donald Trump acusando-o de ter "valores nova-iorquinos"? Não funcionou, claro, principalmente porque buscava propagar a forma errada de ódio. Cruz queria associar seu rival ao liberalismo social - mas entre os republicanos, o desapareço por, digamos, o casamento gay fica muito abaixo da inimizade racial, e disso a campanha de Trump está tratando muito bem, obrigado.

Mas existe outro motivo para que tentar associar Trump a Nova York não tenha surtido efeito. As antiquadas diatribes antiurbanas não se enquadram às realidades do moderno urbanismo dos Estados Unidos. Já houve um tempo em que as grandes cidades podiam ser retratadas como arenas de colapso social distópico, crime descontrolado, antros de viciados em drogas. Mas hoje em dia elas estão passando por um renascimento urbano. Seria possível argumentar que Nova York jamais foi um lugar tão desejável em que morar - para quem consegue bancar os preços.

Infelizmente, cada vez menos pessoas conseguem. Essa é a má notícia. A boa notícia é que o governo de Nova York está tentando fazer alguma coisa a respeito.

Assim, falando de acessibilidade de preços: no primeiro trimestre deste ano, o apartamento médio vendido em Manhattan custou mais de US$ 2 milhões. O número cairá um pouco. Na verdade, o frenesi de compras já esfriou. Mesmo assim, números como esse são indicadores de um mercado da habitação que saiu do alcance das famílias comuns. É verdade que os preços despencaram durante o colapso nacional da habitação em 2006-2009, mas depois começaram a subir de novo, superando em muito o avanço na renda familiar. E histórias semelhantes vêm se desenrolando em muitas das grandes cidades dos Estados Unidos.

O resultado, previsivelmente, é de que o renascimento urbano se tornou uma história que gira em torno de classes sociais. Os norte-americanos de renda mais alta estão se mudando para áreas de maior densidade, onde podem desfrutar dos confortos urbanos; as famílias de baixa renda estão deixando essas áreas, presumivelmente porque não conseguem mais bancar os preços dos imóveis.

Você pode se sentir tentado a dizer que isso não é novidade. A vida urbana voltou a se tornar desejável, a oferta de moradias urbanas é limitada: não seria de esperar que os mais afluentes exercitem sua força financeira e arrematem o espaço disponível? Qual é a diferença entre os apartamentos urbanos e as casas de frente para o mar, que tendem a ser ocupadas pelos ricos?

Mas viver na cidade não é como viver na praia, porque a escassez de moradias urbanas é basicamente artificial. Nossas grandes cidades, mesmo Nova York, poderiam confortavelmente abrigar mais famílias do que fazem. O motivo para que isso não aconteça é que regras e leis bloqueiam a construção. Os limites à altura de edificações, especialmente, nos impedem de fazer uso do mais eficiente sistema de transporte urbano já inventado - o elevador.

Não estou apelando por um fim do zoneamento urbano. Cidades são lugares onde consequências imprevistas, tanto positivas quanto negativas, se manifestam. Meu edifício alto pode bloquear o sol de seu apartamento; por outro lado, pode ajudar a sustentar a densidade necessária a manter as lojas locais em funcionamento - ou, aliás, pode ajudar a sustentar toda a base econômica da cidade. Não existe motivo para acreditar que suspender toda a regulamentação à construção de edifícios promoveria o equilíbrio correto.

Mas as normas de construção em nossas grandes cidades, especialmente nas costas, são quase certamente restritivas demais. E essas restrições têm grande custo econômico. No nível nacional, os trabalhadores médios se mudam não para as regiões que oferecem os maiores salários, mas para regiões de baixos salários nas quais a habitação é mais barata. Isso torna os Estados Unidos mais pobres do que seriam se os trabalhadores pudessem se mudar livremente para as áreas mais produtivas, já que algumas estimativas da renda perdida chegam aos 10%.

Além disso, dentro das áreas metropolitanas, as restrições a novas moradias afastam os moradores do centro, forçando-os a realizar percursos mais longos e criando mais congestionamentos de trânsito.

Assim, existem fortes argumentos em favor de construir mais nas cidades grandes. A questão é como vender uma maior densidade, politicamente. E a resposta certamente é unir um afrouxamento das restrições construtivas a outras medidas. O que explica por que aquilo que vem acontecendo em Nova York é tão interessante.

Para resumir, o prefeito Bill de Blasio liderou a aprovação de um programa que aliviaria seletivamente as normas de densidade, altura e estacionamento, desde que os incorporadores incorporem aos seus projetos moradias de preço acessível e moradias para idosos. A ideia, na prática, é acomodar a crescente demanda das famílias afluentes por um estilo de vida urbano, mas usar essa demanda de forma a tornar a cidade mais acessível para as famílias de baixa renda, igualmente.

Nem todo mundo gosta do plano. E certamente houve ruidosos protestos na reunião do Legislativo municipal que aprovou a medida. Vai demorar anos para que saibamos se ela realmente funciona. Mas é uma tentativa inteligente de tratar da questão de uma forma que poderia, entre outras coisas, mitigar a desigualdade pelo menos ligeiramente.

E eu gostaria de dizer que é muito refrescante, em um ano horrendo como este, ver um político tentando oferecer soluções reais para problemas reais. Se esse é um exemplo dos valores nova-iorquinos em ação, precisamos deles ainda mais.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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