Folha de S. Paulo


Democratas deixam centrismo de lado e voltam à esquerda nos EUA

Na sexta-feira (12), democratas da Câmara chocaram quase todos ao rejeitarem as principais disposições necessárias para completar a parceria Transpacífico, um acordo que a Casa Branca quer, mas que a maioria do partido não. No sábado, Hillary Clinton começou formalmente sua campanha para a presidência e surpreendeu todos os observadores com um discurso descaradamente liberal e populista.

Esses são, naturalmente, acontecimentos relacionados. O partido democrata está se tornando mais assertivo em relação a seus valores tradicionais, um ponto deixado claro por decisão de Hillary ao falar na Roosevelt Island. Pode-se dizer que os democratas estão fazendo um movimento para a esquerda, mas a história é mais complicada e interessante do que essa simples declaração pode transmitir.

Vemos que, desde a eleição de Ronald Reagan em 1980, os democratas têm estado na defensiva ideológica. Mesmo quando venceram as eleições pareciam com medo de endossar posições claramente progressistas, ansiosos para demonstrar o seu centrismo, apoiando políticas como cortes na seguridade social que a base odiava. Mas essa era parece ter terminado. Por quê?

Parte da resposta é que os democratas, apesar de derrotas nas eleições de meio de mandato, acreditam —com ou sem razão— que o vento político está a favor deles. A crescente diversidade étnica vem produzindo o que deve ser um eleitorado mais favorável; a tolerância cada vez maior está transformando questões sociais, que uma vez foram fonte da força republicana, em uma vantagem democrata. Reagan foi eleito por uma nação em que metade da população ainda desaprovava o casamento inter-racial; Hillary está concorrendo em uma nação em que 60% apoiam o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Ao mesmo tempo, os democratas parecem finalmente ter entendido algo que os cientistas políticos têm nos dito há anos: adotar posições "centristas" na tentativa de atrair eleitores indecisos é inútil, porque esses eleitores não existem. A maioria dos supostos independentes é, de fato, fortemente alinhada com um partido ou outro, e os poucos que não são estão apenas confusos. Então, devem também tomar partido daqueles em quem acreditam.

Mas a mudança do partido não é apenas na política, é também nas políticas.

De um lado, o sucesso do Obamacare e das políticas relacionadas a ele —milhões cobertos com muito menos do que era esperado, controle de custos surpreendentemente eficaz para o Medicare— têm ajudado a inocular o partido contra afirmações de que programas de governo nunca funcionam. E, por outro lado, os democratas de Davos que costumavam ser uma força poderosa argumentando contra políticas progressistas perderam muito de sua credibilidade.

Estou me referindo a pessoas —muitas, embora não todas, de Wall Street— que vão a muitas reuniões internacionais onde garantem uns aos outros que a prosperidade está relacionada a competir na economia global, e que isso significa apoiar acordos comerciais e cortar gastos sociais. Essas pessoas têm influência em parte por causa de suas contribuições de campanha, mas também por causa da crença de que realmente sabem como o mundo funciona.

Como se constata, no entanto, elas não sabem. Na década de 1990 os supostos sábios garantiram-nos que não tínhamos nada a temer com a desregulamentação financeira; nós tínhamos. Após a crise estourar, em grande parte graças a essa desregulamentação, fomos avisados de ​​que devemos ter muito medo de investidores de títulos, que iriam punir os EUA por seus deficits orçamentais; eles não o fizeram. Então, por que acreditar neles quando insistem que devemos aprovar um acordo comercial impopular?

E essa perda de credibilidade significa que se Hillary Clinton chegar à Casa Branca, ela vai governar muito diferente da forma como seu marido fez na década de 1990.

Como eu disse, pode-se descrever tudo isso como um movimento para a esquerda, mas há mais do que isso —e não há simetria no movimento republicano para a direita. Democratas estão adotando ideias que funcionam e rejeitando ideias que não funcionam, ao passo que os republicanos estão fazendo o oposto.

E não, eu não estou sendo injusto. O Obamacare, que era uma vez uma ideia conservadora, está funcionando melhor do que os apoiadores esperavam; assim democratas estão comprometidos com a defesa de suas realizações, enquanto os republicanos estão mais fanáticos do que nunca em seus esforços para destruí-las. Impostos modestamente mais altos sobre os ricos não prejudicaram a economia, enquanto as promessas que os cortes fiscais teriam efeitos mágicos se provaram desastrosamente erradas; assim democratas tornaram-se mais confortáveis ​​com uma agenda de impostos e gastos modestos, enquanto os republicanos estão mais firmemente agarrados aos cortes de impostos do que nunca. E assim por diante.

Naturalmente, as mudanças ideológicas importam apenas na medida em que possam influenciar as políticas. E, embora as chances eleitorais provavelmente favoreçam Hillary, e os democratas possam retomar o Senado, eles têm muito pouca chance de retomar a Câmara. Assim, mudanças no Partido Democrata podem demorar um pouco para mudar os Estados Unidos como um todo. Mas algo importante está acontecendo, e, a longo prazo vai ser muito importante.


Tradução de MARIA PAULA AUTRAN


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