Folha de S. Paulo


Necessidade de cortes para impulsionar economia não é consenso

A eleição presidencial de 2016 ainda está a 19 dolorosos e entorpecentes meses nos Estados Unidos. Mas há outra eleição importante acontecendo em apenas seis semanas, quando o Reino Unido vai às urnas. E as questões que estão em debate são as mesmas, em muitos casos.

Infelizmente, o discurso econômico no Reino Unido veio a ser dominado por uma fixação enganosa nos deficit orçamentários. Pior, essa falsa narrativa infeccionou formas de reportagem supostamente objetivas: organizações noticiosas frequentemente apresentam como fatos afirmações que são contenciosas, se não completamente errôneas.

Seria desnecessário dizer que o Reino Unido está longe de ser o único lugar no qual coisas como essas acontecem. Alguns anos atrás, no auge do fetiche norte-americano pelo deficit, a mídia dos Estados Unidos demonstrou alguns vícios parecidos.

Artigos supostamente factuais afirmavam que o medo da dívida estava causando alta nos juros, ainda que houvesse zero prova com que sustentar essas afirmações. Os repórteres abandonavam qualquer fiapo de neutralidade e celebravam propostas de corte de benefícios.

Nos Estados Unidos, porém, parecemos ter deixado essa mentalidade para trás. No Reino Unido não acontece a mesma coisa.

A narrativa de que estou falando se desenrola da seguinte forma: nos anos anteriores à crise financeira, o governo britânico tomou empréstimos irresponsáveis, e por isso o país passou a viver acima de suas posses.

Como resultado, em 2010, o Reino Unido estava em risco de uma crise ao estilo grego; políticas de austeridade, especialmente em forma de cortes de gastos, eram essenciais. E esse recurso à austeridade é justificado pelos baixos custos de captação britânicos, acoplados ao fato de que a economia, depois de alguns anos bem difíceis, agora voltou a crescer com alguma rapidez.

Simon Wren-Lewis, da Universidade de Oxford, definiu essa narrativa como "mídiamacro". O que o termo cunhado por ele sugere é que é isso que se vê o tempo todo na TV e nos jornais britânicos, e a situação é apresentada não como a visão de um dos lados no debate político, mas sim como um simples fato. Mas nenhuma porção dessa avaliação é verdade.

O governo trabalhista que administrava o Reino Unido antes da crise era mesmo perdulário? Na época, ninguém achava que fosse. Em 2007, a dívida pública como proporção do Produto Interno Bruto (PIB) estava perto de sua marca mais baixa em um século (bem abaixo do patamar norte-americano), e o deficit orçamentário era bastante baixo. A única maneira de fazer com que esses números pareçam desfavoráveis seria alegar que a economia britânica estava operando muito acima de sua capacidade em 2007, o que inflacionava a arrecadação de tributos. Mas se isso fosse fato, o Reino Unido estaria experimentando alta inflação, o que não estava ocorrendo.

Ainda assim, será que o Reino Unido estava em risco de uma crise ao estilo grego, envolvendo perda de confiança dos investidores nos títulos de seu Tesouro e uma disparada dos juros? Não parece que estivesse.

Ao contrário da Grécia, o Reino Unido manteve sua moeda e faz sua captação por meio de instrumentos denominados nessa moeda –e nenhum país que atenda a essa descrição enfrentou crise semelhante à grega.

Considere o caso do Japão, que tem dívida e deficit muito maiores do que o Reino Unido jamais teve e ainda assim consegue realizar captação de longo prazo com juro de apenas 0,32% anuais, hoje.

O que me conduz à afirmação de que a austeridade é justificada pelos resultados. Sim, as taxas de juros do Reino Unido se mantiveram baixas. Mas o mesmo se aplica a de quase todos os demais países. Os custos de captação da França são hoje os mais baixos da história do país. Mesmo países envolvidos na crise da dívida, como a Itália e a Espanha, conseguem captar dinheiro a juros inferiores aos britânicos.

E quanto ao crescimento? Quando o atual governo britânico assumiu o poder, em 2010, impôs medidas severas de austeridade –e a economia do país, que vinha se recuperando da desaceleração de 2008, logo voltou a entrar em crise. Em resposta, o governo do primeiro-ministro David Cameron recuou, abandonando seus planos para novas medidas de austeridade (mas sem admitir que era isso que estava fazendo). E o crescimento foi retomado.

Se isso conta como uma política econômica de sucesso, bater na própria cara por alguns minutos também conta –afinal, você se sente ótimo assim que para de fazê-lo.

Se considerarmos tudo isso, é difícil compreender como a narrativa mídiamacro ganhou controle do discurso britânico. A culpa não é dos economistas.

Como aponta Wren-Lewis, poucos economistas acadêmicos britânicos (em contraposição aos economistas empregados pelo setor financeiro) aceitam a proposição de que a austeridade foi justificada.

Essa visão se tornou ortodoxa na mídia a despeito do que os economistas sérios têm a dizer, e não por causa disso.

Mas o mesmo pode ser dito sobre a visão Bowles-Simpson da economia nos Estados Unidos, e sabemos que essa doutrina por algum tempo exerceu grande influência. O que importa é manter a pose, é o fato de que pessoas influentes acreditam que pontificar sobre a necessidade de sacrifícios –ou na verdade de que outras pessoas façam sacrifícios– é o jeito certo de parecer sério e sábio. Daí a preferência por uma narrativa que prioriza a linha dura quanto ao deficit e não a concentração em modos de aumentar a criação de empregos.

Como eu disse, os Estados Unidos em geral deixaram essa visão para trás, por diversas razões –entre elas, suspeito, a ascensão do jornalismo analítico em seções como The Upshot, no "New York Times". Mas o mesmo não aconteceu no Reino Unido. Uma eleição que deveria girar sobre problemas reais será muito provavelmente dominada por fantasias surgidas da narrativa mídiamacro.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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